Traduzido por: Oswaldo Ramos
Digitalização
e Revisão:
Dimasp
04/06/2007
Com exclusividade para:
EDITORA MUNDO CRISTÃO
São Paulo, SP
Dados Internacionais de
Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP,
Brasil)
Weatherhead. Leslie
D.
As três vontades de
Deus: Como e quando Deus usa sua vontade intencional, circunstancial e final.
/ Leslie D. Watherhead; traduzido por OswaldoRamos. -SàoPaulo: MundoCristão.
1997.
ISBN 85-7325-129-8
1.
Deus-Vontade I. Título.
97-4892 CDD-231.4
|
Índices para catálogo sistemático:
1. Deus; Vontade: Doutrina cristã
231.4
2. Vontade de Deus: Doutrina cristã
231.4
Título do original em
inglês:
TheWillofGod
Copyright© 1972 por
Leslie D. Weatherhead,
Publicado por
Abingdon Press
NashvilIe,Tennessee,
E.U.A.
Tradução: Oswaldo Ramos
Capa: Pedro Simão
Supervisão editorial
e de produção: Jefferson Magno Costa
1ª edição brasileira,
dezembro de 1997
impressão: Imprensa da Fé, São Paulo, S.P.
Publicado no Brasil
com a devida autorização
e com todos os
direitos reservados pela
ASSOCIAÇÃO REUGIOSA
EDITORA MUNDO CRISTÃO
Caixa Postal 21.257,
CEP 04602-970 São Paulo, SP, Brasil
Sumário
A Vontade de Deus...
ou a do Homem?......
05
Prefácio..................................................... 06
1. A Vontade Intencional de Deus.............. 07
2. A Vontade Circunstancial de Deus.......... 14
3. A Vontade Ultima de
Deus...................... 22
4. Como Discernir a Vontade de Deus........ 27
5. "Em Sua Vontade Está
a Nossa Paz"......
31
A Vontade de Deus...
Ou a do homem?
Entender quais
são as três vontades genuínas de Deus é descobrir a paz, perder o medo e fugir
da confusão.
Usar a expressão "a vontade de Deus" indistintamente, é convidar o
desastre emocional e intelectual para se instalar no mundo e em nossas vidas.
Em meio a tudo o que
acontece conosco, quando é que se trata realmente de uma das três vontades de
Deus, e o que devemos fazer para distinguir essas três vontades ?
Saber essa diferença é o
princípio da sabedoria, da realização espiritual e do equilíbrio social.
Escrevi este livro para ajudar
você a distinguir as três vontades de Deus. Isto pode mudar sua vida.
Prefácio
Aqui foram
reunidas cinco mensagens sobre as três vontades de Deus, que preguei enquanto
as bombas dos aviões de Hitler destruíam Londres. Meus amigos Edgar C. Barton e
Leslie F. Church, ambos também pastores, disseram-me que a publicação dessas
pregações poderia ajudar a esclarecer a um maior número de pessoas sobre um
assunto de especial importância, nestes dias de tantas perdas e tristezas.
Apresento-as no estilo direto em que foram proferidas. Não tentei disfarçar o
fato de que foram preparadas como sermões.
— L.D.W.
1
A Vontade
Intencional de Deus
Usa-se a
expressão "a vontade de Deus" de modo tão impreciso, sendo as
consequências dessa imprecisão sobre a nossa paz de espírito tão sérias, que
gostaria de passar algum tempo refletin-do com você a respeito do assunto. Nada
mais há que mereça tanta clareza de reflexão; no entanto, parece-me às vezes,
que poucos assuntos geram tanta confusão.
Permita-me dar-lhe um exemplo.
Tenho um amigo cuja esposa querida morreu recentemente. Após sua morte, eis o
que ele disse: "Bem, eu preciso aceitar a morte da minha esposa. Foi a
vontade de Deus". No entanto, sendo médico, ele lutou semanas para salvar
a vida da esposa. Havia contactado os mais competentes especialistas de Londres.
Usara todos os recursos da ciência moderna, toda a engenhosa aparelhagem
mediante a qual as energias da natureza podem ser usadas no combate à doença.
Mas será que durante todo o tempo ele estava lutando contra a vontade de
Deus? E na hipótese de a esposa se haver recuperado, não seria tal fato, para
ele, a vontade de Deus? É certo, pois, que não podemos dar o mesmo nome a duas
coisas completamente diversas. A recuperação da mulher ou, no caso contrário, a
sua morte não podem de igual modo ser a vontade de Deus, aquilo que ele havia
intentado.
Desejo dar-lhe outro exemplo
dessa confusão. "Meu filho morreu há dez dias num dos ataques aéreos a
Londres" disse uma mulher,"mas estou tentando me curvar perante a
incompreensível vontade de Deus." Porém, teria sido aquela morte vontade
de Deus? Eu diria que foi a vontade do inimigo, de Hitler, se preferir, das
forças malignas com as quais militamos. Então, é tudo a mesma coisa?
Temos aí uma mãe que torce as
mãos e chora de angústia pela morte de seu menino. O pastor está ao seu lado, e
anseia confortá-la; embora sua presença e suas orações possam representar
algum consolo, ele sabe muito bem que, quando ruge a tempestade, é tarde demais
para falar sobre a âncora que deveria ter sido atirada antes de ela sobrevir.
Quero mostrar com isso a tremenda
importância de tentarmos pensar com clareza antes que a desventura nos assole.
Se agirmos assim, a despeito de toda a nossa tristeza, contaremos então com uma
filosofia de vida que nos ampara e tranquiliza, assim como a âncora estabiliza
o navio. Caso contrário, diante do furor da tempestade, muito pouco poderemos
fazer até que ela seja amainada. Ah! se o pastor pudesse ao menos injetar na
mente daquela mulher as convicções que ele mesmo nutria a respeito de Deus!
Mas, isso infelizmente é impossível. Em sua angústia, foi isto que a mulher
disse: "Acho que foi a vontade de Deus, mas, se o médico tivesse
chegado a tempo, teria salvado o meu filho". Vê-se, pois, a confusão
de pensamento. Se o médico houvesse chegado a tempo, teria sido capaz de mudar
ou neutralizar a vontade de Deus?
Essa questão me atingiu de forma
mais forte quando estava na índia. Eu estava em pé, na varanda de uma casa,
sobre a qual descera a sombra do luto. Meu amigo indiano havia perdido o
filhinho — a luz de seus olhos — por causa de uma epidemia de cólera. Na outra
extremidade da varanda estava a filhinha dele, a única criança sobrevivente,
que dormia numa cama tosca, recoberta por um véu que a protegia contra os
mosquitos. Andávamos de um lado para o outro. Tentei, bastante sem jeito, confortar
e consolar meu amigo. Disse-me ele, contudo: "Bem, pastor, essa é a
vontade de Deus. É isso. Nada mais: a vontade de Deus".
Felizmente eu o conhecia bem o
bastante para replicar sem que me entendesse mal. Disse-lhe mais ou menos o
seguinte:
— Vamos supor que alguém subisse
os degraus desta escada até esta varanda e, enquanto todos dormissem,
deliberadamente pusesse na boca de sua filhinha, que está dormindo ali, um
chumaço de algodão embebido numa cultura de germes da cólera. Que você diria
disso?
— Meu Deus — exclamou ele — o que
eu diria? Ninguém faria uma crueldade dessas. Mas se tentasse fazê-lo, e eu
apanhasse essa pessoa, eu a mataria sem compaixão alguma, como se estivesse matando
uma serpente, e a atiraria varanda abaixo. Mas o que você pretende trazendo um
exemplo desses?
— Muito bem, John — disse-lhe com
tranquilidade — você acabou de acusar Deus de fazer essa crueldade, ao afirmar
que essa era a vontade dele. Diga que a morte de seu filho é resultado da ignorância
em grande escala, diga que morreu por causa da insensatez, do pecado, diga o
que quiser, que foi pela precariedade do saneamento básico ou pelo descuido
comunitário, mas não diga que foi a vontade de Deus.
Sem dúvida não podemos
identificar como vontade de Deus algo que levaria um homem para a
penitenciária ou um louco para o hospício.
Os que quiserem uma base bíblica
para este sermão, a encontrarão no capítulo 18 do evangelho de Mateus, no
versículo 14: "Assim, pois, não é da vontade de vosso Pai celeste que
pereça um só destes pequeninos".
Vemos, mediante esses exemplos,
que poderiam ser citados com outros infortúnios diferentes da morte, como nosso
pensamento é confuso e desconexo no que diz respeito à vontade de Deus. Mas
deixe-me dizer agora algo que possa aliviar a tensão da sua mente; quero
antecipar algo do que pretendo tratar nas próximas mensagens desta série.
O raciocínio a que cheguei requer
que o assunto seja dividido em três partes. Estamos tratando agora da primeira
delas. A vontade de Deus, na verdade, pode ser dividida em três aspectos:
1. A vontade intencional,
2. A vontade circunstancial,
3. A vontade última.
O problema aparece quando usamos
a expressão"a vontade de Deus"em referência aos três aspectos da sua
vontade, sem fazer distinção entre eles. Porém, quando examinamos a cruz de
Cristo, tal distinção, no meu entender, se torna indispensável.
1. Terá sido a intenção de Deus,
desde o início, que Cristo fosse para a cruz? Creio que a resposta a essa
pergunta deve ser NÃO. Não me parece que Jesus tivesse isso em mente no começo
de seu ministério. Ele veio com a intenção de que o seguissem, não de
que o matassem. A vontade intencional de Deus ou, se preferir, seu propósito
ideal, era que Cristo fizesse discípulos, não que morresse. Que bom seria se
"a vontade de Deus" fosse a expressão usada somente em referência à
vontade intencional de Deus!
2. Todavia, quando as circunstâncias geradas
pela maldade humana criaram o dilema, segundo o qual Cristo deveria morrer ou
fugir, então, dadas as circunstâncias, a cruz tornou-se a vontade de
Deus; entretanto, só naquelas circunstâncias, por si mesmas, e por elas serem
fruto do mal. Naquele caso, qualquer outra ação seria sem valor e impraticável;
foi por isso que o Senhor disse: "Não seja como eu quero, e, sim, como tu
queres". Nas más circunstâncias criadas pela guerra, o fato de o pai dizer
ao filho "estou contente porque você entrou para o exército, João"
não significa que o pai desde o começo tenha almejado que seu filho seguisse
uma carreira militar. Talvez preferisse que o filho, digamos, fosse um
arquiteto. O pai deseja que o filho vá para o exército, só por causadas circunstâncias
impostas pelo mal. Para esse pai, e para o filho igualmente, essa decisão
pareceu a mais honrada, inevitável. Isto ilustra o segundo aspecto da vontade
de Deus: o circunstancial.
3. E finalmente, usamos a expressão "a
vontade de Deus" num terceiro sentido: quando nos referimos à vontade
última de Deus, sua intencionalidade a despeito do mal ou, como veremos, mesmo
através dele. Essa intenção se cumpre sem que se perca nada de seu valor,
obtendo os mesmos resultados a que se chegaria se a vontade intencional de
Deus houvesse sido obedecida, sem frustração, desde o início. Espero que
cheguemos a ver nos demais capítulos deste livro que Deus não pode jamais ser
derrotado de modo definitivo, sendo isso a que chamo de onipotência. Nem tudo o
que acontece é da vontade de Deus, mas nada do que acontece pode definitivamente
derrotar a sua vontade. Assim, no que concerne à cruz, Deus atingiu seu
objetivo irreversível não simplesmente a despeito da cruz, mas por meio dela.
Deus operou grande redenção e concretizou sua vontade última em sentido pleno,
como o teria feito se sua vontade intencional não houvesse sido temporariamente
paralisada.
Sei que as pessoas têm a mente
exausta, por causa do cansaço e pelo estresse ocasionados pelo peso dos
problemas da vida. Mas desejo pedir a todos que, no futuro, na hipótese de
tristezas ou desventuras, procurem ter em mente que a vontade divina para com
a nossa vida manifesta-se de três maneiras, as quais poderão depois ser
harmonizadas: a vontade intencional de Deus, a vontade circunstancial de Deus
e a vontade última de Deus.
Concentremo-nos, portanto, na
primeira, pensando na vontade de Deus sob o aspecto de sua intenção ideal.
Para tanto, uma das primeiras coisas que devemos fazer é dissociar da expressão
"a vontade de Deus" tudo quanto seja perverso e desagradável, que
traga infelicidade. Esses aspectos serão tratados sob o título "A vontade
circunstancial de Deus".
A vontade intencional de Deus
representa o modo de Deus derrarmar-se em bondade, como ocorre com o pai
amoroso em relação aos filhos.
Veja como nosso pensamento está
confuso a esse respeito em razão de certos hinos teologicamente errados. Eis a
estrofe de um deles:
Se é escuro o
caminho, triste o viver, Dá que eu os sofra sem murmurar, E sempre a divina
oração a dizer: "Venha tua vontade se realizar".
Que tipo de Deus é esse que, por
sua intenção, não por causa das circunstâncias atiradas à nossa vida
pela ignorância, pela loucura ou pelo pecado, derrama aflição imerecida e
infelicidade, decepção e frustrações, tristezas e doenças sobre seus amados
filhos, de quem exige que, em meio às lágrimas, ergam a fronte e clamem:
"Seja feita a tua vontade!"? Precisamos acabar com a ideia de que
tudo o que acontece se deve à vontade de Deus, como se essa fosse a sua
intenção. Tais acontecimentos estão dentro da vontade de Deus, se você
precisa usar a expressão, nas circunstâncias sobre as quais já demos algum
indício. Mas precisamos entender o fato de que a vontade intencional de Deus
pode ser temporariamente paralisada pela vontade do homem. Não fosse
verdade, o ser humano não teria liberdade alguma. Todo o mal que obtém sucesso
temporário bloqueia a vontade de Deus temporariamente.
Voltemos aos exemplos anteriores.
Eu poderia dizer ao meu querido amigo: "A morte de sua esposa não era da
vontade de Deus, de modo algum. Foi apenas o fruto da ignorância humana. Se
pudéssemos gastar tanto dinheiro em pesquisas médicas quanto gastamos na
construção de um navio de guerra, a vida de sua esposa poderia ter sido poupada".
Embora não fosse momento oportuno para dizer-lhe isso, não era possível deixar
de pensar dessa forma.
Quando um jovem missionário
manifesta sua presteza e resolução diante de todas as provas, depois de todos
os exames exigidos, para entregar a vida em prol de levar as boas novas de
Cristo a um povo que nunca as ouviu antes, podemos dizer verdadeiramente:
"Seja feita a tua vontade". Mas não podemos dizer o mesmo quando um
piloto despenca, o avião em chamas, para encontrar a morte precoce. Porém,
quando finda a guerra e os jovens de todas as nações podem apertar as mãos e
iniciar
juntos a reconstrução do mundo —
essa é a hora d dizer: "Seja feita a tua vontade".
Não quando um bebé morre, mas sim
quando dois jovens levam o filhinho perante o púlpito da igreja, a fim de
consagrá-lo a Deus, porque desejam que Deus reine em seu lar pequenino, mas
amorável, e na pequenina vida que lhes foi concedida, o filho. Esse é o
momento de dizer: "Seja feita a tua vontade".
Não quando as crianças morrem de
fome na Africa em razão das circunstâncias da guerra, ocasionadas pela maldade
do mundo todo. Mas quando os países oprimidos forem finalmente libertados dol
jugo impiedoso de seus opressores e todas as crianJ cinhas ali tiverem o
suficiente para comer, podendo! cantar e brincar felizes, ao sol, amigo do
corpo e dal alma — é chegado o momento de dizer: "Seja feita ai tua vontade".
Venha comigo a uma favela, na
área esquecida! de alguma cidade grande, em que a vida e o serviço! das pessoas
são meros meios para que outros al-1 cancem seus objetivos, onde encontraremos
doen-l ças do corpo e corrupção da alma, onde o mal se in-l flama e se propaga
em condições sórdidas, terrí-l veis, onde as pessoas nem sequer têm motivação
para protestar, mas aceitam sua forma de vida com apatia mais horrenda que uma
revolução. Se diante disso, alguém diz: "É a vontade de Deus", respondo
que se trata de grande blasfémia, pior do que negar a Santa Trindade.
A opressão económica, a usura, a
negação das dádivas de Deus a seus próprios filhos por causa da nbição de uma
minoria, os horrores da guerra — isso retrata um ateísmo pior do que aquele que
se rofessa. Voltamo-nos para pouco mais de cem nos atrás e maravilhamo-nos de
que os cristãos entoassem hinos a Deus, enquanto a escravidão dominava. Queira
Deus, todavia, que daqui a cem anos nossos descendentes se voltem para nós sem
entender como nos intitulamos cristãos com o corpo de Cristo despedaçado nas
igrejas, pisoteado em nossas cidades, explorado na indústria e no comércio,
abandonado às doenças, embora o conhecimento médico e os recursos terapêuticos
estivessem ao alcance da família humana. Chame a tudo isso perversidade,
chame-o mal inevitável, por causa do pecado que se propagou, mas não diga que
se trata da vontade de Deus.
Percebe, então, a importância que
há em corrigirmos nossa forma de pensar a respeito da vontade de Deus? É que,
por causa de nossa própria confusão, jogamos as pessoas num tormento
inacreditável; embotamos o fio do propósito humano até que as pessoas murmurem
o refrão: "Seja feita a vontade de Deus". Mas o oposto da vontade de
Deus é que está sendo feito.
Se os homens pudessem ver com
maior clareza ps propósitos de Deus e corrigissem seus pensamentos desconexos,
passariam a ser os instrumen->s úteis de Deus para a consecução de seu
propósito, eliminando o mal que arrogantemente consideraram "vontade de
Deus". As pessoas estão usando a expressão "a vontade de Deus"
como se fosse uma fórmula de feitiçaria, selando toda a questão com um tabu de
silêncio, fugindo assim do desafio das perguntas perturbadoras que o pensamento
sincero faria ressoar em suas mentes com a insistência de soar de trovão.
Há, todavia, duas dificuldades:
Mas, apesar dessa
contra-argumentação, eu :ontinuo firme nos meus argumentos. Como se ;abe,
existe uma época em que as coisas podem ;er ditas e outra época em que não
podem ser dias, ainda que sejam verdadeiras. Se passamos por ima grande
tragédia, muito pouco podemos di-^er acerca da vontade de Deus. Mas de uma
coisa \ão podemos nos esquecer: Jamais pode existir :onsolo na mentira.
Apesar do quão intimamente
tenhamos acalentado uma mentira, no momento que a percebermos como tal,
devemos ter a sabedoria de nos afastar dela. Os que se refugiam numa mentira
asseme-lham-se aos que se refugiam sob um abrigo fraquíssimo, feito de ripas
pintadas de modo que pareçam pedras. Quando as pessoas mais precisarem desse
abrigo, ele ruirá, expondo-as à tempestade.
Quem se proteger numa falsa ideia
a respeito de Deus, na hora da necessidade ficará tão sem auxílio quanto o
ateu. Se por recusar-se em ponderar bem as coisas, a pessoa se vir num abrigo
imprestável, incapaz de dar-lhe proteção à alma, essa mesma recusa torna-se
pecado, pois Cristo ordenou-nos que o amemos de todo o coração. E ele é o nosso
único abrigo. Sei quão penoso é encarar a verdade, e as pessoas odeiam ser
obrigadas a pensar, mas só pela verdade é que seremos libertos.
2. Em segundo lugar, há outra
objeção, de que trataremos agora. Alguém poderá dizer: "É bom guardarmos a
expressão 'a vontade de Deus' para as coisas amáveis, alegres, sadias e
benéficas que acontecem às pessoas; porém, algumas das melhores qualidades, as
pessoas adquirem mediante o sofrimento. Portanto, não seria também o sofrimento
a vontade de Deus? O sofrimento muitas vezes dá coragem às pessoas. A guerra
faz heróis".
Veremos essa objeção de modo mais
minucioso ao tratarmos da vontade circunstancial de Deus.
Basta-nos por ora dar uma breve
resposta a essa objeção.
Existe um nó vicioso na lógica da
observação de quem usa esse argumento, visto que a pessoa estará errada ao
argumentar que, para criar a coragem, a guerra é da vontade de Deus. Não foi a
guerra que deu a coragem. A guerra apenas pôs a descoberto a coragem que
sempre existiu. Deu-lhe a oportunidade tremenda de se manifestar. Jamais o mal
gera o bem, embora as circunstâncias do mal muitas vezes ocasionam a
manifestação do bem.
Observe não apenas a falta de
lógica, mas também as implicações infundadas no que concerne à teologia. Se
afirmarmos que o sofrimento causado pelo mal é essencial por causa das
qualidades que produz, pela lógica somos obrigados a supor que Deus precisa do
mal para produzir o bem. Isto nos leva à conclusões mais sérias: Deus só
poderia gerar a coragem fazendo uso de uma guerra perversa; ou quando Jesus
curava as pessoas, estava desafiando a vontade de Deus, em vez de cumpri-la,
pois estava eliminando algo essencial ao crescimento da alma.
Se isso for verdade, que
acontecerá nos céus dos céus depois que todas as almas tiverem sido recolhidas
no último dia? Será que todas as qualidades manifestadas pelo mal
ficarão atrofiadas porque o mal não estará mais presente para produzi-las? Repito
que o mal não gera as boas qualidades. Ele as faz aflorar e lhes
dá exercício, mas sempre existe a possibilidade — e essa é a intenção de Deus,
com toda certeza — de essas mesmas qualidades surgirem e ser exercidas em
decorrência da bondade.
Permita-me trazer-lhe à memória,
a esse respeito, as palavras de Jesus: "Jerusalém, Jerusalém! que matas
os profetas e apedrejas os que te foram enviados! Quantas vezes quis eu reunir
os teus filhos, como a galinha ajunta os seus pintinhos debaixo das asas, e tu
não o quiseste! Eis que a tua casa te ficará deserta" (Mt 23:37,38).
Observe as palavras: "Tu não o quiseste". Subentendem um "...mas
poderias". Veja também estas outras palavras de Jesus: "Eis que a
tua casa te ficará deserta. E em verdade te digo que não mais me verás até que
venhas a dizer: Bendito o que vem em nome do Senhor". Observe também esta
expressão bíblica: "Ah! Se conheceras...". Mostra que tinham a
possibilidade de conhecer. As excelentes qualidades da alma humana não são
concebidas pelo mal. Deus é quem as gera, e às vezes elas se revelam na reação
correta do homem bom diante do mal, sem, contudo, depender do mal para ser
produzidas, pois podem ser ocasionadas mediante uma reação positiva ao
bem.
Sejamos, portanto, extremamente
cuidadosos no uso da expressão "a vontade de Deus". Gostaria de
encerrar este capítulo falando sobre a morte de um grande líder religioso, o
pastor F. Luke Wiseman. Num dia cinzento e nebuloso, esse servo de Deus, nos
seus 86 anos, pregou duas vezes — uma delas no próprio púlpito de Wesley, em
City
Road. Depois, foi para casa. A
esposa morrera há muitos anos. Os filhos eram todos adultos. Podemos
imaginá-lo sentado em sua poltrona, junto à lareira. Caiu no sono e acordou
nos céus. A respeito desse acontecimento você pode usar a expressão "Seja
feita a tua vontade". E alguns de nós acrescentariam outro texto bíblico:
"e que eu termine meus dias assim".
Neste, iremos examinar também
como a calamidade e a tristeza se enquadram em nossa estrutura de pensamento
acerca da vontade de Deus. Por enquanto, guardemos a expressão para aquilo que
Deus de fato intentou. E, quando você vir a glória de Deus refletir-se nesta
terra maravilhosa, na natureza tão exuberante ao nosso redor, na poesia e na
música, na pintura, na arquitetura de primeira qualidade e no serviço humilde,
na vida de pessoas encantadoras, na felicidade de um lar, na saúde do corpo, na
capacidade da mente e na consagração da alma, olhe para o Pai, que está nos
céus, e diga: "Está sendo feita a tua vontade". E dediquemo-nos de
tal modo que possamos nos tornar um, na gloriosa harmonia de todas as coisas,
com todas as pessoas que cumprem a vontade de Deus, para que ela possa
realizar-se na terra, como os anjos a praticam no céu.
2
A Vontade Circunstancial de Deus
Já dissemos que
a expressão "a vontade de Deus"é proferida tão imprecisamente que
ficamos não só confusos, mas também com sentimentos atormentados.
Quando perdemos uma pessoas
amada, dizemos que foi "a vontade de Deus", embora as medidas
tomadas para impedir essa morte dificilmente seriam consideradas contrárias à
vontade de Deus. Se as mesmas providências, no entanto, tivessem alcançado sucesso,
teríamos dado graças a Deus, certos de que, na recuperação do doente, a vontade
de Deus se havia concretizado. De modo semelhante, quando a tristeza, a doença
e a calamidade recaem sobre as pessoas, elas dizem, resignadas: "Seja
feita a vontade de Deus". Dizem isto mesmo quando o ocorrido contraria
essa vontade. Quando Jesus curou muitas pessoas na Palestina, alegrando-lhes a
vida, estava cumprindo a vontade de Deus. Não a estava contrariando, tampouco
anulando-a.
Para reforçar o que estou
querendo provar neste livro, repetirei: a vontade de Deus manifesta-se de três
maneiras:
1. Vontade intencional — seu plano ideal.
2. Vontade circunstancial — seu plano conforme
as circunstâncias.
3. Vontade última — a realização final de seus
propósitos.
Mais uma vez, examinemos o
exemplo supremo da cruz.
1. Sem dúvida não era a vontade intencional de
Deus que Jesus fosse crucificado. Antes, que as pessoas o seguissem. Se o povo
tivesse aceito a mensagem de Jesus, se tivesse se arrependido de seus pecados e
entendido a dimensão do reino que ele veio anunciar, a história do mundo teria
sido muito diferente. Os que afirmam que a crucificação foi da vontade de Deus
precisam lembrar-se de que ela foi da vontade dos homens perversos permitida
pela vontade circunstancial de Deus.
2. Todavia, quando Jesus encarou as circunstâncias
provocadas pelo mal e se viu lançado no dilema de ter de fugir ou ser
crucificado, então, dadas aquelas circunstâncias, a cruz tornou-se a vontade
do Pai. Foi por isso que Jesus disse: "Não seja como eu quero, e, sim,
como tu queres".
Vamos, então, concentrar-nos na
segunda divisão e tratar daquilo a que chamo "vontade circunstancial de
Deus". A questão poderá ficar mais clara ainda se eu relembrar o exemplo
anterior; imaginemos um pai que planeja a carreira do filho com a colaboração
do próprio jovem. Talvez fosse da vontade de ambos, digamos, que o rapaz se
tornasse arquiteto. Mas explode a guerra. O pai está disposto a permitir que o
filho se engaje nas forças armadas. Entretanto, a carreira na marinha, no
exército ou na força aérea é apenas a vontade provisória ou circunstancial do
pai para o filho, vontade gerada pelas circunstâncias da guerra. Dizer que a
intenção ideal do pai em relação ao filho era que o rapaz passasse anos
valiosos da juventude nas forças armadas não corresponde à realidade.
Bem, há, de maneira semelhante,
um propósito intencional da parte de Deus para a vida de cada pessoa.
Entretanto, por causa da insensatez e do pecado humano; porque o livre-arbítrio
do ser humano propicia circunstâncias perniciosas que atravancam os planos de
Deus; porque a nossa unidade com a grande família humana implica em o mal
entre os demais membros da espécie humana poder criar circunstâncias que
perturbam a intenção de Deus para conosco — por tudo isso, existe uma vontade
dentro da vontade de Deus, isto é, a "vontade circunstancial" de Deus
(como a chamo). Ao segui-la, a alma encontra paz, a mente encontra equilíbrio e
a vontade pode manifestar-se de tal modo que, em última análise, o plano
original de Deus é levado à execução plena.
No meu entender, há dois aspectos
da vontade circunstancial de Deus — um no reino natural, e o outro no
espiritual.
1. Examinemos de novo a cruz de
Cristo. Devido as circunstâncias do mal, foi da vontade de Deus que Jesus fosse
traído, preso, coroado de espinhos, crucificado e abandonado na cruz para
morrer sob o sol escaldante. As leis do universo as quais, por si mesmas,
revelam a vontade de Deus, não foram abolidas em benefício de Jesus, o Filho
amado. As leis que governaram a martelação dos cravos nas mãos e nos pés do
Senhor vigoraram no dia da crucificação, da mesma forma que vigoram ao fazermos
um caixote de madeira.
Se algumas bombas forem atiradas
de um avião sobre uma área habitacional densamente povoada, explodirão tanto
sobre a casa de crentes como de ímpios. Se os cravos forem pregados com um
martelo empunhado por um braço forte, perfurarão a carne até do próprio Filho
de Deus. Como as leis do universo estão em vigor, e consistem na representação
da vontade de Deus, você pode, se quiser, chamar tais leis de "a vontade
de Deus", mas só no sentido restrito a que aludimos. As forças da natureza
desempenham suas funções, não sendo revogadas quando empregadas pelas forças
do mal.
Para os que perderam pessoas
queridas em circunstâncias trágicas, não preciso dizer mais nada a esse
respeito. Quando a carne de Cristo foi traspassada na cruz, as leis de Deus com
respeito à dor funcionaram da mesma forma que funcionam quando nos ferimos. E
Cristo aceitou esse fato como parte da harmonia das leis do universo, efetuada
pela vontade de um Deus sábio, santo e amoroso. Cristo não reclamou para Deus
que era injusto as leis valerem contra ele na cruz, sendo ele quem era, o Filho
de Deus. 2. Há, no entanto, um segundo elemento dessa vontade circunstancial de
Deus. O primeiro podemos dizer que é natural; o segundo, espiritual. Cristo
não se submeteu simplesmente ao temível acontecimento da crucificação com a
atitude a que chamamos, de modo equivocado, "resignação". Ele
dominou a situação. Devido as circunstâncias que o mal havia propiciado, passou
a ser também da vontade de Deus que Jesus não morresse como um animal
encurralado. Antes, Deus desejou que ele reagisse ao mal de modo positivo e
criativo, de maneira que conseguisse extrair o bem do mal. É por isso que a
cruz não é mero símbolo de pena de morte, como é o caso da forca, mas
representa o triunfante do mal redirecionado para os propósitos santos de Deus.
Noutras palavras, ao executarmos a vontade circunstancial de Deus, abrimos o
caminho para o triunfo último dele, sem que haja o mínimo prejuízo em nossos
valores.
Tendo considerado o exemplo da
cruz, vejamos agora essa mesma verdade num exemplo bem humano. Tomemos o caso
da mulher solteira, de meia-idade, cuja mente está quase fechada para a
possibilidade do casamento. O que outrora era uma ardente expectativa torna-se
agora uma esperança que se vai esvaindo até deixar de existir. Ora, não faz
parte da vontade intencional de Deus que ela permaneça solteira. O Senhor não
quer que essa mulher fique solteira. A intenção divina, certamente, é que toda
mulher tenha um lar, marido e filhos. A própria estrutura do seu corpo, os
centros criativos de seu cérebro, seus instintos sexuais e impulsos maternais
são provas suficientes disso, pois estão presente em todas as mulheres.
Embora alguns instintos possam
ser reprimidos no inconsciente ou canalizados para atividades não-biológicas,
os instintos estão presentes em todas as pessoas. Fazer com que todo ser
humano sinta-se realizado biologicamente é a intenção de Deus.
Mas, e se a tirania das
circunstâncias malignas — e são malignas quando privam a mulher da sua razão
de ser — puser a mulher num dilema? Ela não conseguirá satisfazer o aspecto
biológico de sua natureza, imaginemos, se não sacrificar seus ideais — ela não
pode praticar sexo sem pecar. Então, a vontade circunstancial de Deus é que
ela permaneça frustrada, e essa vontade pode ser examinada de dois ângulos. Um
diz respeito ao aspecto natural, o outro, ao espiritual.
Primeiramente, há o aspecto
físico da necessidade sexual, visto que nenhuma suposta sublimação pode
resolver essa dificuldade. A sublimação é sempre a segunda melhor alternativa,
mas provisória. Mas, em segundo lugar, ela não deve apenas resignar-se,
talvez com amargura, diante de sua condição de solteira, mas deve reagir de
modo criativo e positivo à vontade circunstancial de Deus, a ponto de
conseguir transformar a vida em algo sublime, algo que Deus possa usar para
consumar sua vontade última, a saber, fazer dessa mulher uma personalidade
completa e integrada, unida ao próprio Deus.
Observamos, então, que o segundo
aspecto da vontade circunstancial de Deus não pode ser efetuado sem a
cooperação humana. Sem ela, a cruz teria sido mais uma integrante da longa lista
de sentenças de morte executadas pelo estado bárbaro e selvagem. Teria sido
um nobre sacrifício em prol de um ideal.
No caso da mulher a que acabamos
de nos referir, sem a colaboração humana, ela apenas se resignaria ante as
forças do universo e tornaria sua frustração impossível de suportar. Mas com
uma postura positiva e criativa diante da situação — a qual, note-se bem, foi
gerada pelo mal, não por Deus —, a mulher deve encontrar nessa mesma situação a
vontade circunstancial de Deus, de modo que sua frustração acabe por contribuir
enormemente para a sua harmonia interior e para os objetivos perfeitos de Deus.
É o que, aliás, muitas mulheres têm feito.
Porém, é muito mais fácil falar
de sublimação do que pô-la em prática. Sobretudo os que não precisam exercê-la
podem falar com mais facilidade a respeito de sua validade para os outros. Na
verdade, a sublimação não é considerada rigorosamente até que seja
inconsciente — em outras palavras, até que as energias instintivas estejam
percorrendo canais não-biológicos, sem que a pessoa perceba essa mudança. Mas
a sublimação pode ter início quando a pessoa volta suas atividades e interesses
para alguma tarefa altruística que
a) seja de uso da comunidade,
b) seja gratificante ou satisfatória para o ego e
c) esteja em harmonia com os ideais da pessoa.
Só de acordo com essas três
condições pode realizar-se a sublimação eficaz.
O exemplo mais comum de
sublimação é o trabalho realizado com os filhos pequenos de outras pessoas. No
tratamento de doentes, no trabalho de enfermagem, no artesanato, na música, na
produção literária, na organização de esquemas, na chefia de clubes e na
direção de lares alheios, as mulheres utilizam suas energias de modos úteis à
comunidade, satisfazendo-se a si próprias, em harmonia com seus ideais. Ao
executarem esses trabalhos, ampliam imensamente o reino de Deus.
Poderíamos abrir um parêntese e
acrescentar que nada há de mais cruel, desumano ou estúpido do que desprezar
uma mulher solteira de meia-idade. É ainda mais intolerável quando o desprezo
se origina dos que se casaram por razões suspeitas. Todos os que trabalham
entre as pessoas carentes relatam que sempre que se desenvolvem trabalhos
altruístas aos necessitados, com sacrifício do conforto pessoal, ali estão em ação
mulheres solteiras de meia-idade, servindo à comunidade e fazendo que as
circunstâncias malignas que frustraram a vontade intencional de Deus contribuam
para a consecução de seu plano último.
Posso imaginar uma dessas
mulheres dizendo: "Eu sei que a vontade de Deus era que eu realizasse a
minha natureza feminina da mesma forma que outras mulheres felizes, que se
casaram. É claro que eu gostaria muito de ter minha própria família, o meu lar.
Mas não vou permitir que o universo me esmague, pois não existem circunstâncias
permitidas por Deus capazes de derrotar de modo definitivo o seu propósito
último. Assim como Jesus reagiu às circunstâncias malignas transformando a
coroa de espinhos em coroa de glória, e a cruz em trono, assim também posso
controlar minhas circunstâncias e extrair delas algo capaz de trazer harmonia
à minha própria natureza, que traga felicidade e bem-estar ao mundo e que ajude
a expandir o reino de Deus".
Como vê, ninguém poderá dizer
para Deus: "Bem, é claro que eu queria fazer isso ou aquilo, mas fui
vítima da doença, da tristeza, da frustração, da guerra ou das perdas
irreparáveis. Diante disso, o que me restava fazer?". Nenhuma
circunstância será tão horrenda como a que Cristo teve de enfrentar. Não é
possível surgir uma situação que traga em si o poder de derrotar-nos ou
de derrotar a Deus — jamais, nem mesmo a morte. Embora ocorram milhares de
mortes contrárias à vontade intencional de Deus, o Senhor não pode ser
derrotado por nenhuma combinação de circunstâncias malignas. Talvez a própria
morte e, conseqüentemente, o fato de o servirmos no céu e não na terra não
façam a mínima diferença para a vontade última de Deus, assim como não faz
diferença se o servimos em
São Paulo ou em Nova Iorque.
Uma coisa só é incrível: Deus
permite circunstâncias capazes de derrotar seus planos últimos de forma
inevitável. Se ele o permitisse, significaria ter abdicado do trono do
universo. Mas a verdade é esta: embora a revolta contra Deus pareça insuperável,
"o Senhor Deus onipotente reina". Como afirmou o escritor de Hebreus:
"Agora, porém, ainda não vemos todas as cousas a ele sujeitas; vemos,
todavia, aquele que... foi coroado de glória e de honra".
Então, voltando aos nossos
exemplos da morte, a que de modo indevido chamamos de "vontade de
Deus", só podemos aceitar que se trata da vontade circunstancial de Deus.
Certa vez, quando um bebê caiu de uma janela no quinto andar, alguém me
perguntou se aquela morte fora da vontade de Deus. Essa pergunta demonstra a
importância de pensarmos de modo correto, visto que nesse caso a resposta é ao
mesmo tempo sim e não.
Sim, é da vontade circunstancial
de Deus. Quero dizer com isso que é da vontade de Deus que a lei da gravidade
esteja em
funcionamento. E é da vontade de Deus que os bebês sejam
feitos de carne e osso. Se um bebê choca-se contra um pavimento de concreto ao
cair de uma determinada altura, claro que é da vontade de Deus que a criança se
quebre — de outra forma, Deus teria feito de borracha ou algo que o valha. No
entanto, sinto que devo responder a essa pergunta com um enfático não, afirmando
que a morte do bebê não foi da vontade de Deus, porque não foi de sua vontade,
de forma alguma, que por descuido alguém deixasse a criança cair daquela
janela.
Vezes e vezes sem conta, quando
as pessoas perguntam "É da vontade de Deus?", penso que temos de
separar os assuntos, a fim de dar uma resposta inteligente.
Reflita, por exemplo, sobre a
questão das doenças. O ministro cristão, ao fazer sua visitação, enfrenta de
contínuo a pergunta quanto às doenças serem ou não da vontade de Deus. A
primeira resposta é não. A vontade de Deus para o homem é a saúde perfeita.
Mas não devemos esquecer que Deus pode usar um corpo sadio com mais eficácia do
que um corpo enfermo. Jesus não teria sido uma bênção espiritual maior, em seu
ministério, caso fosse aleijado, diabético ou tuberculoso. Entretanto, a
vontade de Deus encontra-se também dentro das circunstâncias malignas; que
todos os sofredores que me lêem entendam que, se reagirem corretamente diante
de tais circunstâncias, a vontade última de Deus será realizada tão
eficazmente quanto se não estivessem doentes. Deus não permitiria o
câncer, se essa doença por si mesma fosse capaz de derrotá-lo.
Creio que a questão pode ser mais
bem entendida, talvez, se pensarmos nas doenças causadas pela invasão dos
germes. No meu entender, Deus é responsável pela criação dos germes, mesmo dos
que causam doenças. Não sei por que foram criados. Pode ser que tenham tido lá
a sua função na natureza. Acho que ninguém tem a resposta a essa pergunta.
Se alguns desses germes invadirem
um corpo cuja resistência tenha sido enfraquecida por circunstâncias malignas,
o resultado é a instalação da doença. E a essa tal doença podemos chamar, se
quisermos, a vontade circunstancial de Deus. Todavia, é vontade de Deus apenas
dentro das circunstâncias geradas pelo mal.
Deixe-me repetir de novo que essa
vontade circunstancial pode ser vista de dois ângulos — o primeiro é natural;
o segundo, espiritual. Há a afecção física, a que chamamos doença; mas, em
segundo lugar, há a possibilidade de o doente reagir de modo esplêndido a essas
circunstâncias, de modo que delas surge um bem espiritual, na comunidade, de
maior valor do que a saúde da maioria das pessoas.
É por causa da boa reação de
alguns santos de Deus diante das más circunstâncias que se criou a falsa crença
de que a enfermidade e o sofrimento são da vontade de Deus. Deixe-me expressar
de outra forma. Se houver um reavivamento espiritual tão magnífico que a pessoa
passa a viver em íntima cooperação com Deus, o corpo sadio fica mais em
harmonia com a sua vontade. Entretanto, muitas pessoas sadias estão adormecidas
espiritualmente, sem cooperarem com o Senhor de modo algum, e muitos doentes,
por meio de suas doenças, experimentam um despertamento espiritual, de modo
que dessas circunstâncias malignas extraem forças e liberam energias
espirituais muito mais valiosas do que a apatia espiritual dos sadios.
Estou certíssimo de que a batalha
contra a doença é da vontade de Deus, e agradeço ao Senhor por todas as
pessoas que participam dessa batalha. Antigamente, nos Estados Unidos, os
lobos costumavam descer das florestas, entrar nas vilas e causar grandes
danos. Entretanto, para os nossos imbatí-veis pais peregrinos, essas invasões
de lobos não eram a "vontade de Deus". Lançaram mão de todos os seus
recursos e "liquidaram" os lobos.
Quando uma comunidade é invadida
por um contingente de germes, isso não é da vontade de Deus. A situação é a
mesma. Você talvez me diga que os animais são em menor número ou que os germes
da doença só podem ser vistos por microscópio, mas o problema é o mesmo, e a
batalha é a mesma.
Não posso entender como alguém
que tenha lido atentamente o Novo Testamento pode se pôr no leito de um doente
e, sem dar explicações, emitir a queixa patética de que a doença é da vontade
de Deus. Sempre imaginei que Jesus haveria de responder com ira a palavras tão
impensadas como essas. Quando lhe levaram uma mulher doente havia muitos anos,
Jesus se referiu a ela como "...esta filha de Abraão, a quem Satanás
trazia presa há 18 anos". Satanás!
Segundo posso entender na atitude
de Jesus, tanto pelas palavras que pronunciava, quanto pelos milagres de cura
que realizava de modo esplêndido, o Senhor sempre considerou a doença parte do
reino do maligno e, com todos os seus poderes, a combateu, instruindo seus
seguidores a que fizessem o mesmo.
Gosto de pensar em Jesus de pé,
ao lado do leito de enfermidade, colaborando com médicos e enfermeiras, para
restituir a saúde, atuando na mente e no espírito do doente da mesma forma que
os médicos operam no corpo. Se estes falharem, gosto de pensar em Cristo
demonstrando ao sofredor que a vitória pode ser conquistada, e a derrota
afastada, para que os propósitos de Deus sejam alcançados.
Uma última reflexão. Se você
disser: "Bem, talvez haja aqui um pouco de descuido da parte de Deus por ele
permitir que essas coisas aconteçam, se não estavam em sua intenção
original". Concordo em que há algum mistério aqui. Seria tolice dizer que todos
os caminhos de Deus fossem claros ao homem. Não quero dar a impressão de poder
responder facilmente a todas as perguntas referentes a doenças e a sofrimentos
que me fossem trazidas. Eu mesmo muitas vezes me espanto diante do sofrimento
que algumas pessoas suportam, de modo especial as criancinhas.
Mas fico imaginando se, em certo
sentido, não estamos todos na condição de crianças. Posso imaginar uma criança
olhando para o pai, que a ama, e lhe perguntando: "Papai, você não acha
que é um tanto descuidado de me deixar sentir dor desse jep to?" Imaginei
também uma grande reunião de bebês que ainda engatinham com a capacidade milagrosa
de expor seus pensamentos em
palavras. Pense neles, se puder, todos reunidos num grande
salão, sendo um deles o líder. Este ajeita o babador e se dirige aos colegas,
dizendo mais ou menos o seguinte: "Tenho certeza de que meus pais não se
importam comigo. Vejam os meus joelhos!". Os joelhos do bebê estão
arranhados e vermelhos. E imagino a assembléia aprovando a seguinte deliberação:
"Esta assembléia protesta contra a negligência dos pais e exige que no
futuro não se construam móveis com quinas agudas, que sejam abolidos os pisos
de pedregulhos e os quintais de concreto, e que as unhas dos gatos lhes sejam
arrancadas".
Tenho certeza de que essas
resoluções seriam aprovadas por unanimidade. Não dizemos a Deus: "Veja os
meus joelhos!". Mas dizemos: "Veja as minhas frustrações, tristezas,
decepções e dores! Como podes ser tão insensível, e como esperas
que pensemos que te preocupas conosco?". Talvez as tragédias da infância
representam para nós o que nossas tragédias significam para Deus.
O Senhor não é insensível, como
tampouco o pai, mas suas perspectivas são diferentes. Mas o pensamento que
consola a criança também me consola. Se a criança pensasse profundamente em
seu problema, acho que diria: "Há muita coisa que não entendo, mas sei que
o meu pai me ama, e se preocupa comigo. Por isso, quanto a mim, estou bem
certo de que, pelo fato de Deus ser amor, nada existe neste mundo que possa
ser considerado tortura absurda. Há muitas coisas que não entendo. Muita coisa
há que não poderei entender, senão depois de passar à fase adulta. Mas, como o
conheço por outros meios, especialmente pelo fato de ele ser revelado em Jesus Cristo , sei
que, embora não consiga entender a resposta a minhas perguntas, há uma
resposta, e nisso posso descansar feliz."
Pois eu sei em quem tenho crido
E estou bem certo que
é poderoso
Para guardar o meu
tesouro até o dia final.
Não nos podemos deixar de
impressionar profundamente com as respostas que Jesus dava às pessoas. Quando
João Batista lhe fez uma pergunta, respondeu: "Deixa por enquanto".
Quando Pedro lhe fez uma pergunta, o Senhor respondeu: "O que eu faço não
o sabes agora, compreendê-lo-ás depois". E quando, na noite mais tenebrosa
da história do mundo, anterior ao dia de sua morte, todos os discípulos lhe
faziam perguntas, disse o Senhor: "Tenho muitas coisas a dizer-vos ainda,
mas não as podeis suportar agora".
Veja, pois, que nem o próprio
Jesus pôde dizer: "Eu expliquei o mundo". O que ele disse foi:
"Eu venci o mundo". Ah, se confiamos quando sem enxergar o caminho,
se caminharmos segundo a luz que temos — que muitas vezes eqüivale a lutar
contra as trevas —, se fizermos fielmente aquilo que sabemos ser a vontade de
Deus, nas circunstâncias que o mal nos reserva, podemos descansar, seguros de
que as circunstâncias permitidas por Deus, desde que nossa reação seja com fé,
coragem e confiança, jamais poderão derrotar os propósitos últimos de Deus para
nós. Agindo assim, extrairemos da vida algo grandioso e esplendoroso. Teremos
paz de espírito. Encontraremos integração para nossa mente. Seremos capazes de
servir nossos companheiros com coragem e alegria.
Então, certo dia — essa promessa
temos —, contemplaremos a face do Senhor e entenderemos tudo. Agora vemos
obscuramente, como que num espelho, mas depois veremos face a face. Francamente,
por difícil que seja dizê-lo, é falta de fé não ser capaz de suportar a idéia
de algo que Deus tenha permitido.
Sei que o que é certo
é certo; que quem dá receberá
mais;
Que o dever ilumina o
caminho para os formosos pés
da paz;
Que a coragem é
melhor que o medo, e que a fé é mais
verdadeira que a
dúvida.
Por mais que os
inimigos lutem de modo acirrado, e
por maior que seja o
tempo em que os anjos ficarem
ocultos,
Sei que a Verdade e o
Direito têm o Universo ao seu
lado;
Sei que, em algum
lugar, além das estrelas, há um
Amor mais forte do
que o ódio;
Quando cair a noite,
eu o verei — e esperarei.
3
A Vontade Última de Deus
Há uma frase no
fim do livro de Jó que sintetiza a mensagem deste capítulo: "Bem sei que
tudo podes, e nenhum dos teus planos pode ser frustrado". Moffatt traduziu
esse texto assim: "Nada é demasiado difícil para ti".
Falamos a respeito da vontade
intencional de Deus — isto é, o plano original de Deus em prol do bem-estar de
seus filhos, intenção que a insensatez e o pecado do homem prejudicaram.
Tratamos da vontade circunstancial de Deus, sua vontade de acordo com as
circunstâncias originadas pela maldade humana. Desejo falar agora sobre a
vontade última de Deus, do objetivo que, parece-me, ele alcança, não só apesar
do que o homem possa fazer, mas até mesmo utilizando-se dessa maldade a fim de
fazer cumprir seu plano.
Voltemo-nos para a cruz mais uma
vez, o nosso supremo exemplo. Veremos que:
1. a vontade intencional de Deus não era que
Jesus fosse crucificado, mas que fosse seguido;
2. a vontade circunstancial de Deus, dadas as
circunstâncias geradas pela maldade humana, foi que Jesus aceitasse a morte;
todavia, que a aceitasse de modo positivo e criativo, para que cheguemos à
3. vontade última de Deus — a saber, a redenção
do homem. Este foi reconsquistado para Deus, não apesar da cruz, mas através
dela, tendo sido criada pelo pecado humano como instrumento para fazer cumprir
a vontade última de Deus.
O quadro que me vem à mente é o
de crianças brincando às margens de pequenino riacho que desce montanha abaixo
ao encontro do rio. As crianças pequenas podem represar um pouco da água do
riacho, com o auxílio de pedras e terra. Mas nenhuma delas consegue impedir
que as águas cheguem, finalmente, ao rio. (Não me apertem contra a parede,
dizendo que uma empresa de engenharia poderia fazer uma represa que segurasse
toda a água!) Diante de Deus, somos criancinhas bem pequenas. Embora
consigamos às vezes desviar e prejudicar seus planos, não creio que os
consigamos derrotar definitivamente. Ainda que esse exemplo não nos leve tão
longe, digo que com freqüência nossos erros e pecados são utilizados como mais
um canal a levar a água dos planos de Deus ao rio de seus propósitos.
Como vê, a onipotência de Deus
não significa que, mediante simples exibição de poder superior, ele consegue o
que quer. Se agisse dessa maneira, o livre-arbítrio do ser humano seria uma
ilusão, e o seu desenvolvimento moral, impossível. O "objetivo" que
Deus tem em mente não pode ser imposto; o propósito de Deus, a expiação de
todas as almas consigo, deve provir da escolha individual do ser humano; não
vem da imposição da vontade de Deus, com poder irresistível que não deixa lugar
para a nossa livre escolha.
Poder significa capacidade de
alcançar um objetivo. Visto que o propósito é ganhar a vontade do ser humano,
qualquer atividade de Deus que negasse ou suprimisse a vontade humana (para
que não lhe derrotasse o propósito) não seria uso de poder, mas confissão de
fraqueza e permissão de derrota.
Quando dizemos, portanto, que
Deus é onipotente, não queremos dizer com isso que nada vá acontecer sem a
vontade (= intenção) de Deus. Queremos dizer, isso sim, que nada acontece que o
derrote de modo definitivo.
Para que o homem seja livre de
fato, para que a comunidade se una num vínculo tão forte, que um sofre por
todos da mesma forma que um se beneficia de todos — para que a vida, em suma,
se baseie
na família e não no indivíduo,
então é óbvio que dez mil coisas poderão acontecer contrárias à intenção de
Deus, e milhões de inocentes sofrerão por causa do pecado alheio. Não
precisamos de mais exemplos dessa grande verdade. Os horrores da guerra e o
sofrimento de inocentes comprovam-no de modo enormemente convincente.
O que se entende por onipotência
de Deus é que ele alcançará por fim o seu objetivo último, que nenhum valor se
perderá, ainda que o ser humano consiga represar e prender a corrente dos
propósitos de Deus. E Deus — se não puder usar seres humanos como agentes — os
empregará como seus instrumentos, embora com grande sofrimento para o Senhor e
para eles mesmos. "Bem sei que tudo podes, e nenhum dos teus planos pode
ser frustrado."
Aqui vai outro exemplo que pode
ajudar-nos. Antes de existir o extinto mata-borrão, secava-se a tinta de um
documento mediante um pó fino espalhado sobre a folha. Certo dia, um operário
de uma empresa de papel cometeu um erro. Digamos, só para fazer uma comparação,
que o tal homem cometeu um pecado. Por causa de sua flagrante desatenção e
falta de cuidado, o operário deixou de fora um ingrediente químico.
Conseqüentemente, o papel produzido revelou-se impróprio para a escrita. O
dono da fábrica ficou irado. Aquele erro iria significar a perda de toda a
carga de papel produzido.
Quando, porém, lhe trouxeram
amostras do papel e ele tentou escrever, o homem notou que o papel absorvia
de imediato a tinta. Ocorreu-lhe então a idéia do mata-borrão. Digamos, só para
o propósito de nossa discussão, que o objetivo do dono da fábrica de papel era
ganhar dinheiro. Vemos, então, que a aparente perda converteu-se em lucro. O objetivo último
(ganhar dinheiro) foi alcançado, ainda que a intenção (ganhar dinheiro mediante
a venda de papel para escrever) foi frustrada pelas circunstâncias criadas
pelo mal (o descuido do operário), às quais houve reação positiva e criativa.
É claro que nenhum exemplo que
criemos abrangerá com perfeição a realidade espiritual. Você poderia, diante
disso, fazer uma objeção: "Ora, muito bem, então não vamos incomodar-nos
com coisa alguma. Pouco importará se formos descuidados, estúpidos ou
pecadores. Se Deus pode usar o mal tanto quanto usa o bem, que Deus cuide dos
males! Nada que façamos parece fazer grande diferença!".
Pois aí está o velho argumento
que Paulo combateu com tamanho vigor, em sua carta aos romanos. Quando os
homens perguntavam "Permaneceremos no pecado, para que seja a graça mais
abundante?", assim respondeu Paulo: "De modo nenhum. Como viveremos
ainda no pecado, nós os que para ele morremos?". Desde que tenhamos visto
o que é o pecado — "o braço erguido, o punho fechado, o murro na face de
Deus", como Joseph Parker o descreveu —, como poderemos praticá-lo? Seria
como se um estudante de Medicina abrisse a cabeça da mãe com um machado e
dissesse: "Esta minha ação foi muito boa!? Aumentei meu conhecimento da
estrutura do cérebro".
O pecado é o fato mais negro do
universo. Uma coisa é dizer: "Este mal foi cometido. Que bem posso
extrair dele?". Outra, completamente diferente, é dizer: "Vou
praticar o mal de modo premeditado a fim de tirar algum proveito dele".
Além disso, embora Deus use um
instrumento para alcançar seus objetivos, se tal instrumento for um ser
humano, este deve pagar pelos seus pecados. Deus usou a cruz, já
dissemos, como instrumento para um propósito divino, mas isso não impediu que
o Senhor afirmasse a respeito de Judas: "Ai daquele por intermédio de quem
o Filho do homem está sendo traído! Melhor lhe fora não haver nascido!"
(Mt 26:24). E ainda: "É inevitável que venham escândalos, mas ai do homem
pelo qual eles vêm!" (Mt 18:7).
Com tudo isso bem claro na mente,
a mensagem, no entanto, se me afigura de imenso consolo para estes dias. São
dias de grande dor e de grandes perdas, de sofrimento e de tristeza. Todavia,
não são dias de desperdício. São fruto do pecado do mundo inteiro. Voltando
ao exemplo do mata-borrão, trata-se agora da negligência, não de um só
operário, mas de milhões. Não pensaremos no passado com frases que se iniciam
com: "Ah, se em 1918 nós houvéssemos...". A idéia é dolorosa demais
agora. O resultado daquele descuido, que resultou na 2-Guerra Mundial,
não foi desperdício de papel, mas de vidas, lares, cidades, dinheiro e energia.
Mas será que houve tão-somente um desperdício? Minha resposta é um retumbante
não! Pela simples razão de que confio no Dono dessa grande fábrica, representada
por um mundo de operários que estão alcançando os seus propósitos. Ele não
perde a paciência, nem diz a respeito deste mundo: "Estou farto de vocês
todos. Eu não os devia ter criado!".
Imagine que a terra é ferida com
um golpe de máquina agrícola. A natureza se porá a trabalhar de imediato para
cicatrizar o ferimento. Ela o cobrirá de relva verde que cresce nas
imediações, e também com violetas e outras flores, as quais não poderiam ali
crescer enquanto um rasgo na terra não servisse de abrigo contra o vento norte.
Com um plano perverso, os homens crucificaram o Filho de Deus, mas dentro de
seis semanas outros homens estavam pregando que a cruz era instrumento de
salvação. Esses pregadores não se referiam à cruci-ficação como um crime dos
homens. Com ousadia quase alarmante, referiam-se à cruz como obra redentora de
Deus.
Agora o mundo todo está
crucificado. Mas veja o que está acontecendo! Surgiu uma nova consciência
social. Que conversa toda é essa a respeito de uma lei de ensino, de novas
prescrições para a saúde, de novas providências habitacionais, de novo
planejamento urbano? Ora, que relação isto tudo tem com a guerra? Havia
cortiços e favelas antes da guerra, péssimas condições escolares e mau atendimento
médico ao povo. Não foi a guerra que trouxe isso. Digo-lhes que o Espírito de
Deus está em operação, num trabalho magnífico. Ele faz que a ira do homem
sirva ao seu propósito, e proporcione o cumprimento de sua vontade última.
O Senhor está usando o momento em
que o coração do homem está horrorizado pelo mal que ele mesmo gerou. E nesse
momento que o Senhor o desperta para aquilo que sempre foi a vontade divina.
Deste modo, desperto e sensível, o homem, ao cumprir a vontade circunstancial
de Deus, pode chegar à sua vontade última, com tanta certeza quanto se a
vontade intencional tivesse sido de início cumprida. É certo que o horror
extremo da guerra não teria sido necessário para que o homem entendesse as
intenções de Deus para seus filhos que vivem nas grandes cidades.
Uma jovem senhora, cujo marido
morreu num acidente, disse-me o seguinte: "Sim, admiro sua preocupação
com os assuntos do mundo e com os problemas cívicos, mas cheguemos ao
indivíduo. Meu marido foi morto, e meus dois filhos pequenos ficaram sem pai.
Sou jovem, e a minha vida se estende numa longa solidão. Como Deus pode
realizar sua vontade última em minha vida? É certo que sua vontade intencional
foi um lar para mim e a felicidade no casamento. Na minha maneira de ver, a
vontade de Deus fracassou para sempre".
Se eu lhe oferecesse uma resposta
fácil, eu me odiaria a mim mesmo, e você me desprezaria. Considerei a pergunta
porque quero ser sincero e não quero fugir dela. Neste caso, ninguém pode dar
uma resposta a não ser pela fé, visto que ninguém consegue ver o fim a partir
do começo. Permita-me dizer duas ou três coisas, com muito amor. Na noite da
Sexta-Feira da Paixão, onze homens sentiam-se imersos na maior depressão e
angústia, como você. Diziam no coração: "Confiamos nele. Seguimos os seus
passos. Ele queria estabelecer o reino. Foi o que ele nos disse. E o maligno
teve permissão para arrebatá-lo de nós. Isto é o fim".
No entanto, estavam errados, não?
Era apenas o fim do equívoco deles e o início do mais maravilhoso uso do mal
por parte de Deus. Se você se entregar ao desespero, também estará errado! Um
dia, como aqueles discípulos, descobrirá quão profundamente errado esteve e
ficará mais triste com seus desesperos do que com suas perdas.
Você sabe que o seu amado não se
perdeu. Ele vive. O Senhor está executando seu plano. Deus está usando seu
amado no que ele quer para você. Por que você não reassume a vida com coragem,
em comunhão espiritual com Deus, em memória do amado que está com o Senhor? Por
que não se torna o pai e a mãe de seus pequeninos? Por que não conforta os corações
mais fracos que o seu, nesta noite escura que caiu sobre a humanidade? Diga
com o poeta Tennyson:
Nada caminha com pés
errantes; Nenhuma vida pode ser destruída, Nem jogada fora como lixo ao nada,
Pois Deus importa-se com todos nós: guarda-nos para si.
Aí está, pois! Tenho certeza de
que você não vai ser defraudado. Quando chegar ao fim da estrada não terá
nenhum sentimento de injustiça, nenhum sentimento de perda. A vontade
intencional de Deus era que você exercitasse plenamente sua personalidade, por
meio de algo que poderíamos chamar de regato da montanha, os anos verdes de sua
vida conjugai. O regato está agora represado. Mas você tem certeza, segundo o
lugar onde está, com visão tão limitada, de que Deus não pode realizar sua
personalidade por nenhum outro meio? O propósito primeiro para o universo todo
é o Amor, e Deus jamais falhará, jamais desamparará nenhum de seus filhos, a
menos que se lhe oponham para sempre.
O mal pode fazer-nos coisas
terríveis. Quanto mais leio e penso, mais acredito no diabo.
— Deus está dando corda ao diabo
nestes dias — disse um amigo, doutor em teologia, à sua mãe.
— Sim — disse a senhora idosa —
mas continua segurando a outra ponta com firmeza.
Deus reina. Um Deus que é como
Jesus, que morreu para que um sonho se tornasse realidade. Uma realidade melhor
que nossos mais fantásticos sonhos. Descanse nesta certeza da vontade última de
Deus. "Nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem jamais penetrou em
coração humano, o que Deus tem preparado para aqueles que o amam". Confie em Deus. Descanse na
natureza de Deus. Ele, que iniciou essa curiosa aventura a que chamamos vida
humana, a controlará até o fim. "Eu sou o Alfa e o Ômega, o
princípio e o fim, o primeiro e o último". A última palavra
está com Deus.
Esse Deus, que vive e ama para
sempre, Um só Deus, uma só lei, um só elemento, Um só acontecimento divino e
distante, Para quem a criação toda se dirige...
"Um só acontecimento divino
e distante" de natureza tal qual nenhum ser humano pode sequer sonhar,
mas a que podemos chamar de concretização da vontade última de Deus.
4
Como Discernir
a Vontade de Deus
Tendo feito as
distinções acima a respeito das três maneiras como a vontade de Deus se manifesta,
podemos perguntar-nos agora se é possível discerni-la, e como. Faço um quadro
mental para você: o de uma pessoa perdida numa floresta. Não precisamos
descobrir se ela se perdeu por culpa sua, ou se foi mal-orientada, ou se teria
sido vítima de um acidente. A pessoa perdida está fazendo uma pergunta que nos
últimos dias tem estado nos lábios de muita gente: "E agora, para onde
vou?". Essa pessoa entende que deve haver um caminho, o plano de Deus para
sua vida, naquelas circunstâncias, mas de que maneira pode essa pessoa ter
certeza de que aquele é o caminho de Deus, e como pode ter certeza de que não
cometerá erros?
Primeiro, vamos responder à
primeira pergunta.
Para sermos bem sinceros, essa
pessoa não pode ter certeza de não estar cometendo um erro enquanto não
chegar ao fim. Precisa ir caminhando pela fé, mais que pela vista. Todavia, se
estiver disposta a ler as "placas"e seguir as orientações, vai acabar
no lugar em que Deus
queria que estivesse. Felizmente Deus lida conosco no exato lugar onde
estamos.
Há uma história engraçada a
respeito de um motorista que pôs a cabeça para fora da janela do carro e
perguntou a um camponês qual era o caminho para Londres. Ao que este
respondeu: "Bem, senhor, se eu estivesse indo para Londres, eu não
começaria por aqui". Felizmente, Deus pode começar conosco onde estamos,
e ele tem meios de mostrar-nos o caminho de sua vontade para nós.
Estou certo de que a maior ajuda
disponível para quem quer descobrir a vontade de Deus está em aprofundarmos
nossa comunhão com ele. Todos os que conhecem a Deus são os que de modo mais
rápido e certo discernem a sua vontade. Às vezes se ouvem pessoas discutindo a
respeito de um presente que gostariam de dar a um amigo. É possível que alguém
então diga: "Ora, eu o conheço há 50 anos. Sei o que ele gostaria de
ganhar". Penso que, de modo geral, a autoridade de tal pessoa é
imediatamente reconhecida.
Às vezes, tentando interpretar a
vontade de uma pessoa morta, alguém dirá: "Eu sei de que ele mais
gostaria". O conhecimento, a amizade e o amor tornam-se as qualificações
que decidirão o que se fará a respeito da pessoa em questão.
Sem dúvida foi a intimidade que
Jesus desfrutava com o Pai — se pudermos dar-lhe nome tão simples — que fazia
o Senhor ter tanta certeza, ao trilhar os caminhos tortuosos deste mundo, em
cada curva, e em cada bifurcação, de qual era a direção segundo a vontade de
Deus.
O Senhor quase se perdeu
no jardim das Oliveiras; a noite estava excessivamente escura. Foi difícil
encontrar o caminho; mas, ajoelhando-se em profunda agonia espiritual, o
Senhor usou a chave poderosa — "Não se faça a minha vontade, e, sim, a
tua". Cristo abriu a porta que o levaria à morte, crendo que naquelas
circunstâncias deveria tomar o caminho da cruz.
Entretanto, deixando de lado a
amizade e a comunhão, há numerosas "placas" que nos orientam, sobre
quais eu gostaria de falar de modo breve.
Até mesmo pessoas da mesma
geração têm opiniões diferentes a esse respeito. Uma pessoa pratica algo
relativamente mau sem sentir nenhuma alfinetada na consciência. Outra faz a
mesma coisa e sente que um tormento lhe penetra a alma, um grande remorso, o
qual talvez não se justifique tanto.
Anos a fio a escravidão jamais
foi condenada pela consciência humana, e, nos séculos à nossa frente, muitas
pessoas acharão incrível que nossa consciência pudesse dormir sem se preocupar
com as favelas e com as guerras. Porém, no final de tudo, reconheceremos uma
voz que dirá: "Isto está certo; aquilo está errado". E reconheceremos
o caminho que conduz à vontade de Deus.
2. Há outro "sinal" de
estrada a que damos o nome de "bom senso". "Orei pedindo
orientação", disse um homem certa vez, "mas nada aconteceu. Não
recebi resposta alguma às minhas orações. Então usei o bom senso". Mas,
quem lhe deu o "bom senso", e por que foi-lhe dado? Se Deus colocou
dentro da nossa mente um maquinismo que nos ajuda a tomar decisões, por que não
o usaríamos? É certo que um entendimento baseado na apreciação bem ponderada da
situação merece mais confiança do que impulsos. Mas não merece mais confiança
que os desígnos de Deus. Ao mesmo tempo precisamos fazer uma advertência: às
vezes a orientação da vontade de Deus é o oposto daquilo que o bom senso está
determinando. Às vezes a vontade de Deus é o que o mundo chama
"loucura".
3. Não vamos desprezar o valor do
conselho de um amigo. Não me refiro ao conselho de um ministro do evangelho,
nem o de um consultor profissional; refiro-me a compartilhar as dificuldades
com um amigo sábio que, pelo fato de poder ver a questão de outro ângulo,
consegue enxergar os prós e os contras de modo imparcial, e que, por estar
emocionalmente fora do problema, muitas vezes nos pode prestar um conselho
muito útil.
É claro que há problemas em que o
melhor meio de Deus ajudar a pessoa é mediante um especialista. Numa situação
médica ou psicológica difícil, talvez não tenhamos sabedoria suficiente para
trazer a melhor solução; o psicólogo fez dos problemas particularmente difíceis
para nós seu campo de especialização. De novo pensemos no conselheiro como um
instrumento nas mãos de Deus, como alternativa à nossa capacidade de avaliação.
Lembre-se de duas citações de Browning:
Silêncio, eu imploro!
Esse amigo pode muito bem
ser... Deus!
e a outra:
Deus nos ensina a
ajudar-nos uns aos outros;
Portanto, emprestemos
nossa mente.
Descubra um amigo com visão
cristã, para que lhe empreste sua mente na resolução de seus problemas, e Deus
dará a você orientação segura. Não quero dizer que há obrigatoriamente uma
identificação entre o que o amigo aconselhar e a vontade de Deus, mas o
problema, visto sob novo prisma, se apresentará de forma mais clara.
4. Há outra maneira de usar a
mente e a sabedoria das pessoas. Agimos assim ao ler bons livros, sobretudo
os históricos e os biográficos. Já fui grandemente consolado ao ler biografia
de grandes homens. Poucos problemas existem em nossa vida que grandes pessoas
já não tenham enfrentado antes de nós; e, quando lemos a Bíblia, biblioteca de
variados livros, embora escritos sob uma perspectiva ímpar — sob as três
manifestações da vontade de Deus e sob os propósitos de Deus —, talvez
tenhamos acesso com maior clareza à orientação que Deus proporciona aos filhos
que procuram discernir sua vontade.
5. Não se deu ainda, creio, o devido valor à voz
da Igreja. Certa vez Jesus recomendou a seus discípulos que ouvissem a igreja
(Mt 18:17). Acredito não estar sendo demasiado severo se disser que nenhuma
igreja funcionará como deve se não mantiver grupos de comunhão fraterna aos
quais o crente perplexo possa levar seus problemas. Esse irmão pode até
disfarçar, dizendo: "Conheço um homem que...", sendo ele próprio a
pessoa com problema.
Posso afirmar com certeza,
baseado na experiência própria que tive no City Temple, que às vezes a alma
perturbada, em busca em discernir a vontade de Deus recebe direção com clareza
cristalina, quando recorre a um grupo de crentes solícitos, prudentes,
amorosos, perguntando qual seria a vontade de Deus em determinada situação.
6. Nossos amigos quacres utilizam muito
bem o que chamam "luz interior", e apoio inteiramente as afirmações
que fazem. Dizem que Deus pode falar diretamente à alma humana e mostrar sua
vontade aos que o buscam. Sem dúvida isto é verdade. Desejo fazer apenas um
alerta. Seguir a prática dos grupos de Oxford, esforçando-se para que a mente
fique inteiramente vazia e, a seguir, considerar qualquer coisa que vier à
mente como vontade de Deus, é prática de todo temerária.
Corremos o risco de supor que
esse método pelo qual recebemos a "luz" faz que ela seja "divina".
Mas o pensamento ou impulso que ocorre à mente vazia é apenas o fruto de
processos mentais anteriores como, por exemplo, do pensamento que ocorre à
mente depois de longa discussão. Na verdade, ninguém consegue desligar a
mente, apagá-la a partir de certo ponto, impedir o fluxo dos pensamentos. Isso
é tão impossível quanto tentar isolar uma onda do mar, na suposição de que
nenhuma relação tem com as demais ondas que vêm atrás. No entanto, se o método
for usado com sabedoria e prudência e se o que "vier" à mente
naqueles momentos de tranqüilidade for testado de outras maneiras, como as
apresentamos acima, se tudo for "testado"por outras pessoas, ninguém
pode negar que a vontade de Deus pode ser discernida desta maneira.
Dessa forma, então, a vontade de
Deus, no momento que precisamos de ajuda, pode ser discernida. Quero ressaltar
a última parte do que acabei de dizer: no momento que precisamos de ajuda. Já
cometi o erro de tentar discernir a vontade de Deus com anos de antecedência.
Cheguei à conclusão de que Deus não nos incentiva a ver as coisas à nossa
frente se estiverem ainda longe demais. Deve-se aceitar a realidade de que não
sabemos onde e como a estrada vai terminar. Basta saber que, ao chegar a uma
encruzilhada, saberemos que caminho tomar.
Embora gostemos de pensar que é
de máxima importância não cometer erros — e repito que jamais podemos ter
certeza de não haver cometido um erro —, creio firmemente no conceito expresso
no capítulo sobre a vontade última de Deus. Nossos erros, se cometidos de boa
fé, não resultarão em ficarmos perdidos. "Não perderemos nosso caminho
providencial." Com freqüência Deus interliga nossos erros ao elaborar seu
plano para nós, da mesma forma que tece nossos sofrimentos e pecados.
Entretanto, permita-me encerrar o
capítulo com duas perguntas desafiadoras que sempre me faço e desejo
transmiti-la a você:
1. Quero mesmo discernir a
vontade de Deus, ou simplesmente quero que ele aprove a minha? Conta-se a
história engraçada do pastor que fora convidado para pastorear uma igreja que
pagava um salário quatro vezes maior que o que ele vinha recebendo. Sendo
homem consagrado, passou muitas horas em oração a fim de discernir a vontade de
Deus. Certo dia um amigo encontrou o filho desse pastor na rua e perguntou-lhe:
— Então, o que o seu pai está
fazendo?
— Bem — disse o garoto — meu pai
está orando, e minha mãe encaixotando as coisas.
O pai perguntava a Deus:
"Que queres que eu faça?". Mas a mãe, com intenções não tão boas,
estava dizendo a Deus: "Vou fazer isso, Senhor. Espero que tu
aproves".
Discernir a vontade de Deus
significa colocar-nos fora do quadro — não vamos escolher um caminho,
argumentando que é o caminho de Deus, só porque é desagradável (já tratei dessa
falácia), nem ir ao outro extremo, dizendo: "Vou fazer tal e tal coisa.
Por favor, aprove meu plano, Senhor, porque quero muito realizá-lo".
Não te pedimos o
conhecimento — tu no-lo deste já.
Senhor—o querer realizá-lo—aqui está nossa maior necessidade.
Dá-nos o efetuar,
acima da intenção. A ação, a ação!
“Em Sua
Vontade
Está a Nossa Paz"
Neste capítulo gostaria que o
leitor tivesse em mente não só a citação de Dante, que encima estas linhas —
"Em sua vontade está a nossa paz" —, mas também a palavra de Deus no
livro de Provérbios: "Reconhece-o em todos os teus caminhos, e ele
endireitará as tuas veredas"(Pv 3:6).
Podemos achar magnífico o fato de
Dante ter dito: "Em sua vontade está a nossa paz", mas há tanta coisa
acontecendo no mundo hoje fora da vontade de Deus — pelo menos no sentido de
estar fora da intenção de Deus —, que podemos nos sentir afastados da paz.
Exatamente! Essa é a razão por que não encontramos a paz, antes a guerra a nos
cercar e a intranqüilidade de espírito. Depois de tantos anos de guerra não é
de surpreender que encontremos tantas pessoas doentes. Se não estão
incapacitadas no corpo, milhares se encontram ansiosas, preocupadas e insones.
Além disso, se uma pessoa tiver imaginação ou um pouco de sensibilidade e
permitir que a mente divague sobre o morticínio e o sofrimento, sobre a
preocupação e a infelicidade deste mundo, sua mente permanecerá ferida.
Só se sente bem a pessoa que, de
alguma forma, por causa de seu temperamento ou de sua indiferença, ou pela
capacidade de desviar os olhos das desgraças, conseguiu edificar um muro de
defesa a separá-la do mundo que sangra ao redor. Para a maioria das pessoas
sobra a tristeza profunda, dia após dia. Subitamente tal tristeza se concentra
num caso excessivamente doloroso, quando a pessoa que sofre é alguém que
amamos, ou por que a pessoa que sofre nos escolheu como portadores de seu
fardo.
A pessoa alegra-se ao encontrar o
alívio de ter o fardo compartilhado; mas às vezes um de nós, sofredores, julga
que não conseguirá viver um só dia mais. O sofrimento é tão grande, o peso é
tão esmagador que até nos impacientamos como Dante, clamando: "Sim, mas
nada disso é da vontade de Deus. Então, que paz podemos encontrar?".
Penso ser aqui que deve entrar o
valor de nosso pensamento anterior, nossa distinção entre a vontade
intencional, a vontade circunstancial e a vontade última de Deus.
Vimos que a vontade intencional
de Deus pode ser desviada pelo mau uso que o homem faz do livre-arbítrio — pela
loucura e pela ignorância deste mundo, e pelo relacionamento familiar mediante
o qual a humanidade toda está intimamente ligada, de tal modo que os seus
pecados me afetam, e os meus pecados afligem aos demais. No entanto, existe uma
vontade de Deus dentro das circunstâncias ocasionadas pelo mal.
Creio, como já disse antes, que a
cruz não foi a intenção de Deus para Jesus Cristo. A intenção de Deus foi que
as pessoas seguissem a Jesus, não que o crucificassem. Mas, quando os homens
perversos atiraram Jesus à cruz, o Senhor aceitou a vontade de Deus naquelas
circunstâncias, e sua reação transformou a cruz em instrumento de poder, mediante
o qual a vontade última de Deus pôde ser realizada.
No jardim do Getsêmani, quando a
sombra da morte descia sobre o Senhor, ele viu, à semelhança do peregrino de
Bunyan, uma luz brilhante; ao per-severar no caminho, o Senhor cumpriu os
propósitos de Deus, não só apesar da cruz, mas através dela.
Assim, a mensagem deste capítulo
é que nenhuma circunstância má pode jamais nos sobrevir sem descobrirmos nela
um caminho, o qual é a vontade de Deus para a ocasião, e devemos praticar, como
vimos no último capítulo, o discernimento da vontade de Deus, para que não
tropecemos nem fracassemos na descoberta de qual seja esse caminho. Quando o
tivermos achado, ainda que o mundo inteiro esteja em tumulto, haverá pelo menos
a paz interior, bem no âmago de nosso ser — a paz que sobrevém pelo fato de nos
sabermos dentro da vontade de Deus, a qual nos é revelada naquelas circunstâncias,
naquele momento.
Participar da vontade de Deus
redunda em paz por três razões:
1. Livramo-nos do medo de nos
perder. Todos sabem quão terrível é quando a criança não consegue encontrar o
caminho de casa. Há uma boa ilustração a esse respeito, na maneira pela qual um
piloto de avião descobre o caminho de casa. Uma onda de rádio é enviada pela
estação de sua cidade. Desde que o piloto permaneça dentro dessa onda e a
siga, encontrará o caminho de casa. Se se desviar da onda, um ruído forte ressoará
nos fones de ouvido, o que significa com toda clareza: "Você está indo na
direção errada. Volte até que haja total silêncio". Dentro da onda sonora,
há paz.
Creio não estar forçando a
ilustração ao dizer que Deus envia, por assim dizer, uma onda de orientação —
isto é, sua vontade para nós nas circunstâncias que enfrentamos agora — e, enquanto
estivermos dentro de sua vontade, teremos paz. A turbulência e a
intranqüilidade tomarão conta de nossa mente, se nos afastarmos de sua vontade
ou não conseguirmos achá-la — coisa que com freqüência, como bem sei, para
grande tristeza minha, nos acontece, ainda que procuremos diligentemente
evitá-lo.
Acho que acontece a mesma coisa
na cabecinha de um pássaro. Não nos referimos à "coragem" nem à
"confiança" da andorinha, visto que tais valores humanos não têm
sentido no mundo das aves. Todavia, na primavera, ou no início do verão, uma
andorinha na África longínqua inicia uma viagem de milhares de quilômetros,
de volta aos telhados da mesma cidadezinha, às mesmas árvores em que no ano
passado edificou seu ninho. Essa andorinha não se desviará, nem perderá o
caminho. Descobrirá seu caminho não-traçado, entre as tempestades, entre ventos
tempestuosos, por cima das ondas tumultuadas, sem perturbação alguma, sem mau
humor, sem ansiedade, visto que, embora de modo mecânico, instintivo, a
andorinha está no caminho da vontade de Deus, e na vontade de Deus há paz.
Assim é que Browning diz:
Partirei a fim de
testar minha alma!
Vejo meu caminho,
como os pássaros vêem sua trajetória não-traçada.
Eu chegarei! Não
pergunto a que horas, por qual circuito,
por qual caminho
terei de seguir...
Na hora certa, na boa
hora de Deus, chegarei lá.
Guardemos bem esta mensagem: ao
nos mantermos na vontade de Deus, como a vemos em qualquer experiência,
descobrimos o caminho, ainda que sobrevenham tempestades aparentemente
avassaladoras, até por fim chegarmos aonde Deus quer que estejamos — e o objetivo
de todos os esforços humanos é cumprir os propósitos de Deus e ser um com ele.
Esse peso da responsabilidade com
freqüência nos esmaga. Mas creio que a mensagem de Deus a nós inclui isto. É
como se ele nos dissesse: "Enquanto você estiver tentando fazer minha
vontade, aceitarei a responsabilidade por tudo que acontecer. Carregarei o
fardo em seu lugar. Dirigirei sua vida, e as conseqüências serão minha
responsabilidade, não sua". "Reconhece-o em todos os teus caminhos,
e ele endireitará as tuas veredas" (Pv 3:6).
Talvez outro exemplo nos ajude
aqui. Há pouco tempo tomei conhecimento de uma garota cuja mãe, longe de casa,
delegou-lhe a responsabilidade de cuidar da casa, do pai e de vários irmãos
menores. Você talvez consiga imaginar o peso da responsabilidade posto sobre os
ombros daquela criança, que tinha a tarefa de substituir a mãe, não só no
cuidado da casa, mas na atenção às exigências das crianças menores. Essa menina
comportou-se com bravura e desempenhou suas funções de modo maravilhoso. Mas,
quando a mãe voltou, você pode imaginar o alívio da menina? Ela clamou:
"Ah! Mãe! Que bom que você voltou!".
Lembre-se de que a menina talvez
tenha continuado a desempenhar a maior parte daqueles deveres domésticos, mas
agora a mãe assumia a responsabilidade. Creio que esse exemplo é profundo.
Quando submetemos nossa vontade à
suprema vontade de Deus, em certo sentido podemos dizer a Deus: "Que bom
que tu voltaste!". Já não estamos desempenhando uma série de deveres
desacompanhados, nem levando sozinhos a responsabilidade da vida. Estamos
tentando fazer a vontade de alguém que está conosco o tempo todo, e que nos
diz: "Tudo que você tem de fazer é seguir meu plano, minha vontade, dia a
dia, e a responsabilidade pelo que acontecer será minha. Eu a assumirei por
você". Porém, muitas vezes, em vez de deixarmos que Deus se responsabilize,
estamos tentando arcar com o peso do mundo. Mas isso é responsabilidade de
Deus.
Talvez eu possa ilustrar um pouco
melhor o que pretendo dizer, citando parte de uma oração que escrevi há pouco,
para meu conforto espiritual, num período de tensão muito forte:
Senhor Jesus, a ti
que suportas o peso dos homens, e és confortador dos oprimidos, trazemos todos
os que estão tristes. Ajuda-nos a partilhar teu amor fortalecedor com o nosso
próximo, mas concede-nos a graça de termos o contínuo refrígério da comunhão
contigo. Que não sejamos esmagados pelos fardos do mundo. Tu és o que leva os
nossos fardos — nós não agüentamos peso algum. Tu és o Redentor; nós, os
pecadores. Só tu, ó Cristo, podes carregar as tristezas do mundo. Nessa fé,
ensina-nos a cumprir nossos deveres, dia a dia, desde que os entendamos como
vontade tua, e livra-nos da opressão e da tirania dos que tentam oprimir-nos
com pesos superiores aos que o ser humano pode suportar. Que olhemos para ti
continuamente, ó Cordeiro de Deus, que levaste os pecados do mundo.
Ao mesmo tempo, como é fraco o
homem que está constantemente pesando as suas decisões: "Devo fazer isto?
ou Devo fazer aquilo?". O princípio orientador "farei a vontade de
Deus no que puder discerni-la" responde a muitos de nossos conflitos e
traz-nos paz e forças. Se nos for dito: "Sim, mas você poderia fazer
cessar o conflito tomando uma decisão errada", minha resposta é que
cometer um erro sempre suscita uma dezena de conflitos quando antes havia
apenas um. Afundamo-nos cada vez mais no pântano do mal e perdemos as forças na
tentativa infrutífera de safar-nos dali, pois o universo tende para o bem.
Para o direito eterno
As estrelas eternas
são fortes.
Se esta fosse uma aula de
psicologia, eu tentaria explicar com que freqüência a personalidade se exaure
nos conflitos internos. Ao escrever estas palavras, lembro-me de uma jovem
oficial do Exército que certa vez me consultou, queixando-se de fadiga tão
grande que em certas ocasiões não conseguia erguer o braço acima dos ombros
para pentear os cabelos. Sua mente estava atormentada pela obsessão de vir a
adoecer. A verdade era que parte de sua mente desejava adoecer, visto que a
doença lhe traria compreensão, amor e segurança no lar, sob os cuidados dos
pais. Seu namoro havia sido rompido recentemente; a moça sentia-se sem amor, e
almejava o carinho da mãe. Mas outra parte de sua mente temia a doença, para
ela sem causa real, e essa doença resultaria em grande sentimento de culpa por
ter de sair do Exército. Ela odiava o Exército, porque nele não havia a menor
oportunidade de ser amada. A sede de amor e a ausência de amor — como sabem
muito bem os psicólogos — são importantes causas das neuroses.
Tais conflitos nos deixam
exaustos e enfraquecidos. A jovem sente o conflito entre o dever para com sua
mãe e o desejo de independência. O dr. Hadfield nos conta que, na mente de
certo soldado, o sentimento do dever era tão forte, mas formava tão grande
conflito com seu desejo de fugir, movido pelo instinto de autopreservação, que
lhe causou uma paralisia nas pernas, a qual solucionou o problema
imediatamente, embora fizesse dele uma vítima, uma baixa no Exército.
Em nossa clínica psicológica
conheci o conflito que assolava um estudante. Este tinha o desejo de
sobressair-se nos estudos universitários, como fizera no curso secundário, mas
agora sofria a inferioridade que o agarrara com tanta intensidade ao tentar
fazer o curso universitário. Aqui ele se viu entre pessoas com qualidade
intelectual mais apurada que a dos de sua antiga escola. A frustração de não
ser mais o primeiro aluno da classe, o medo de ser
tachado de aluno mediano e o
desejo de estar em primeiro lugar na universidade causaram um conflito tão
cansativo que o rapaz ficou doente. Diz Hadfield sabiamente:
Quando enfrentamos
nossos conflitos e de modo deliberado tomamos nossas decisões, ao dirigir todos
os nossos esforços a um propósito grandioso, cheios de confiança e sem medo
algum, nossa alma se restaura, cheia de harmonia e força.
Sempre imagino que o quadro que
Jesus pintou com suas palavras —"Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de
mim, porque sou manso e humilde de coração; e achareis descanso para as vossas
almas" (Mt 11:29) —, na verdade está falando do jugo que une o boi forte
a um animal mais fraco, distreinado. O boi mais fraco contribui apenas com sua
pouca força, como diríamos, mantendo-se no nível do boi mais forte. Este
carrega o peso maior, na extremidade do jugo. É o responsável pelo sulco
direito, em linha reta, e por atingir o outro lado do terreno. Se o boi mais
fraco ficar puxando o arado para outra direção, a de sua escolha, o jugo lhe
esfola o pescoço, e o peso se lhe torna grande demais. "Tomai sobre vós o
meu jugo", diz-nos Jesus, "e aprendei de mim, porque sou manso e
humilde de coração. Não sejais desobedientes, presos a vossas próprias
opiniões, orgulhosos e autoconfiantes, dizendo: 'farei o que eu bem entender'.
Se vós
fizerdes isso, fareis que o jugo
fique esfolando vossos pescoços. Caminhai comigo, e o trabalho será fácil (é o
verdadeiro sentido da palavra). A responsabilidade será tirada de vós, e o
vosso peso se tornará leve". (Em sua vontade está a nossa paz.)
Quando adolescente, muitas vezes
eu tirava férias numa fazenda na Charnwood Forest. Perto da fazenda havia uma
enorme pedra na qual eu gostava de me sentar, principalmente no pôr-do-sol. Lá
embaixo, no sopé do morro íngrime, havia um reservatório d'água rodeado de
juncos e arbustos. Ao lado, a imensidão das águas. Do outro lado um bloco de
granito imenso, vermelho, soerguendo-se acima do lago. No alto do rochedo
viam-se uns pinheiros soberbos.
Sentei-me naquela rocha em todas
as horas do dia. Posso fechar os olhos agora e recobrar a sensação de
tranqüilidade e de paz que me sobrevinha naquele lugar solitário. Quase posso
ouvir o grito da gaivota ao sobrevoar as águas, o doce sussurro do vento, o
murmúrio das águas caindo nas pedras de uma pequena praia em meio aos juncos.
Certo dia me sobreveio, quase
como uma revelação, um pensamento que pode ser algo banal para você, que me
atingiu a mente com a força da verdade. Não havia seres humanos, tampouco habitação
humana à vista. Tudo que eu enxergava cumpria totalmente e com perfeição a
vontade de Deus. Concordo que ali a vontade do Senhor era cumprida
mecanicamente, e que a vida campestre, selvagem, ao meu redor, não oferecia o
peso de uma decisão. Mas eu parecia estar aprendendo o segredo da harmonia e da
paz daquele lugar. Ali a vontade de Deus era executada com perfeição. Se
pudéssemos executar a vontade de Deus voluntariamente, como se faz na natureza
de modo mecânico, acredito que encontraríamos a mesma sensação de paz.
"Reconhece-o em todos os teus caminhos [como os pássaros fazem], e ele
endireitará as tuas veredas."
Os poetas conseguem dizer essas
coisas melhor do que nós. Permita-me concluir com uns versos do poeta William
Cullen Bryant, que os escreveu quando contemplava um pássaro a voar — assim lhe
pareceu — em direção do centro ao pôr-do-sol:
Até onde, por entre o
orvalho que cai,
Enquanto rebrilham
nos céus as últimas gotas do dia,
Ao longe, através de
profundidades róseas,
Persegues teu caminho
solitário?
Em vão o olho do caçador
Poderia marcar teu
distante vôo, para fazer-te o mal,
Teu vulto recortado
no céu cinzento
Flutua ao longe.
Procuras tu a beirada
pantanosa
Do lago coberto de
mato, a margem do rio extenso,
Ou as pedras no meio
do oceano que aparecem e se
escondem
Segundo as marés,
próximas à praia ?
Existe um Poder cujo
cuidado
Te ensina o caminho
ao longo dessa costa que não
mostra caminho algum —
O ar deserto,
ilimitado —
Em que voas a sós, não porém perdido.
Partiste. O abismo do
céu
Engoliu teu vulto. No
entanto, em meu coração
Gravou-se a lição que
me deste
De que tão cedo não
me esquecerei.
Aquele que, de uma
parte para outra,
Te guia pelo céu
infinito em vôo certo,
No longo caminho que
a sós devo trilhar
Também conduzirá meus
passos com segurança.
Nenhum comentário:
Postar um comentário