Cartas do Inferno
Completas (31 Cartas)
C. S. Lewis
Título original: The Screwtape
Letters
Tradução e inclusão das Cartas
XVI a XXX
e Formatação: SusanaCap
Sumário
A melhor forma de correr com o
Diabo, se ele não se rende aos textos das Escrituras é zombar e caçoar dele,
pois o mesmo não suporta o escárnio.
Martinho
Lutero
O Diabo... o espírito do
Orgulho... Não suporta ser debochado.
Thomas More
PREFÁCIO
Não pretendo explicar como a correspondência que
agora exponho chegou às minhas mãos. Há dois erros iguais e opostos no que diz
respeito à matéria Demônios: Uma é desacreditar em sua existência. A outra
é acreditar e sentir um excessivo e doentio interesse neles. Os mesmos demônios
ficam igualmente satisfeitos pelos dois erros e portanto, contemplam um
materialista e um mágico com o mesmo prazer. O tipo de roteiro que é usado
neste livro pode facilmente ser construtivo para qualquer um que tenha
aprendido o "pulo do gato", ou seja, já tenha um mínimo de
conhecimento sobre nossos adversários; mas para qualquer um que tenha intenções
escusas a respeito do uso deste material já adianto: Não conte comigo !
Os leitores são advertidos a conceituar o Diabo como um
mentiroso; nem tudo que o Screwtape diz poderia ser assumido como verdade,
mesmo do seu próprio ponto de vista. Não tenho tentado identificar qualquer dos
seres humanos das cartas; mas creio ser improvável que as personalidades (ou
papéis que representam) digamos, o Pastor Spike ou a mãe do paciente, fossem
exatos. Há pensamentos ansiosos tanto no Inferno quanto na Terra.
Concluindo, foi
feito pouco esforço para
concatenar a cronologia das cartas. A carta de número XVII parece ter
sido composta antes do racionamento de guerra ficar sério; mas em geral, o
método diabólico de contar datas não tem qualquer relação com o tempo
terrestre, e portanto, não me preocupei em entendê-lo ou reproduzi-lo. A história
da Guerra Européia, a não ser vagamente, num caso ou outro em que venha a
envolver aspectos espirituais de um ser humano, com certeza não
interessaria a Screwtape.
C. S. Lewis,
Magdalen College, 5 de Julho, 1941
INTRODUÇÃO
Foi durante a
Segunda Guerra Mundial que as Cartas do Inferno apareceram em colunas do
Guardian (agora extinto). Espero que elas não tenham apressado a sua morte. Mas, com certeza, fizeram-no
perder dentre seus leitores, pelo menos um: determinado clérigo do interior
teve oportunidade de escrever ao redator cancelando sua assinatura sob a
alegação de que "muitos dos conselhos veiculados por aquelas cartas lhe
pareciam não somente errados mas até mesmo diabólicos". Entretanto, em
geral elas alcançaram tal receptividade que o autor jamais sonhara que chegaria
a tanto. As críticas literárias mostraram-se ora inchadas por aquela espécie
de ira que demonstra ao escritor de que o seu alvo teria sido, de fato,
atingido. A procura do livro foi, desde o início, prodigiosa e assim tem
continuado de modo crescente. Na realidade, a venda nem sempre significa o que
os autores esperam. Se o leitor pretender avaliar o número dos que lêem a
Bíblia pelo número de Bíblias que são vendidas, certamente incorrerá em grande
erro. As Cartas do Inferno, dentro de seus limites, estão expostas à
mesma sorte de ambigüidade. E livro do tipo que se costuma oferecer a
afilhados, do tipo que costuma ser lido em voz alta por ocasião dos retiros. E
até mesmo, como já observei com um riso algo forçado, daquele tipo de livros
que são deixados nos quartos de hóspedes, para que ali permaneçam sem qualquer
manuseio. Por vezes, tais livros são comprados por motivos ainda menos
plausíveis. Certa senhora conhecida do autor descobriu que a bela atendente que
lhe enchia bolsas de água quente no hospital, havia lido As Cartas do
inferno. Foi-lhe dado também saber o porquê: A senhora sabe, disse a
moça, fomos advertidas de que nas entrevistas, depois de serem respondidas as
perguntas relacionadas com assuntos reais e técnicos, a diretoria e outros às
vezes fazem perguntas sobre nossos interesses de modo geral... Nesse
caso, a melhor coisa é respondermos que gostamos de ler. Assim sendo, recebemos
uma lista de cerca de dez livros de leitura mais ou menos agradável, com a
recomendação de que deveríamos ler pelo menos um deles. E você escolheu as
Cartas do Inferno? Bem, de fato o escolhi, pois era o que tinha menos páginas.
Ainda, depois de descontarmos essas ninharias, o livro conseguiu leitores
autênticos em número suficiente para que valha a pena ao autor responder a
algumas perguntas que tem surgido em várias mentes. A mais comum delas é
se eu admito mesmo a existência do Diabo. Ora, se por Diabo o inquiridor queria
dizer a existência de um poder oposto a Deus e, como Deus, auto-existente desde
a eternidade, a resposta é sem dúvida, não! Nenhum ser não-criado existe alem
de Deus. Deus não tem nenhum ente que lhe seja oposto. Nenhum ser poderia
jamais alcançar uma tão "perfeita maldade" que se opusesse à perfeita
bondade de Deus. Quando, pois, se tirasse a esse ser oposto todas as espécies
de coisas boas: a inteligência, a vontade, a memória, a energia e a existência
própria, nada mais lhe restaria.
A pergunta mais cabível é: Se eu admito a existência de diabos.
Admito-a, sim. Isto quer dizer o seguinte: Creio na existência de anjos e
admito que alguns destes, pelo abuso do livre arbítrio, tornaram-se inimigos de
Deus e, por decorrência desse fato, também são nossos inimigos. A tais
anjos podemos chamar diabos. Não diferem, quanto à essência, dos bons anjos,
mas a natureza deles é depravada. Diabo opõe-se a anjo no sentido em que
dizemos que homem mau é o oposto a homem bom. Satanás, o líder ou ditador dos
diabos, não é ente oposto a Deus e,sim ao arcanjo Miguel. Assim admito, não
como se tal coisa constituísse uma parte essencial de meu credo, mas no sentido
de que é uma de minhas opiniões. Minha religião não cairia em ruínas caso fosse
demonstrada a falsidade desta opinião. Até que seja demonstrada tal falsidade -
é difícil serem arranjadas provas de fatos negativos - prefiro manter minha
opinião. Tenho sempre para mim que ela concorre para explicar muitos fatos.
Está em consonância com o sentido claro das Escrituras, com a tradição do
Cristianismo e com o modo de crer da maioria dos homens, através dos tempos.
Alem do mais, esta opinião não colide com coisa alguma que qualquer das
ciências tenha demonstrado como verdadeira. Poderia parecer desnecessário (mas
não o é) acrescentar que a crença na existência dos anjos, tanto bons como os
maus, não significa admitir a forma de sua representação, quer na arte, quer na
literatura. Os diabos são retratados com asas de morcego e os anjos bons com
asas de pássaro, não porque alguém afirme que a depravação moral haveria de
transformar penas em membranas, mas porque a maioria dos homens gosta mais dos
pássaros que dos morcegos. As asas (as quais nem todos tem) lhes são
atribuídas para sugerir a rapidez de energia intelectual sem impedimento
algum. A forma humana lhes é atribuída pelo fato de que o homem é a
única criatura racional que conhecemos. As criaturas mais elevadas do
que nós na ordem natural, sejam elas incorpóreas ou sejam dotadas de algum tipo
de corpo animado, inacessível à nossa experiência, tem de ser representadas
simbolicamente - ou não seriam jamais representadas.
Tais formas não são só simbólicas, mas sempre foram tidas como
simbólicas por todos os pensadores. Os gregos jamais admitiram que os deuses
fossem realmente tal como seus escultores os representavam, dotados da bela
compleição humana. Consoante a poesia grega, quando um deus deseja
"aparecer" a um mortal qualquer, assume temporariamente a forma de um
homem. A Teologia Cristã, quase sempre tem explicado os
"aparecimentos" angélicos desta maneira. "Somente os ignorantes"
dizia Dionísio no V século, "sonham que os seres espirituais são realmente
como homens alados". Nas artes plásticas, essas representações simbólicas
vem se degenerando paulatinamente. Os anjos de Fra Angélico estampam nas faces
e gestos a paz e autoridade celestiais. Mais tarde, surgem os anjinhos de
Raphael, nus e rechonchudos. Finalmente, surgem os anjos meigos, delgados e
delicados da arte do século XIX, anjos de compleição tão feminina que só não
parecem sensuais por causa de sua insipidez. São como eunucas frígidas, usadas
para o serviço no Paraíso. Esses símbolos (todos eles) são perniciosos. Nas
Escrituras, as visitações angélicas são sempre alarmantes e assim se
apresentavam: "- Não temas". O anjo da era vitoriana parece dizer
com simplicidade: "- Estou aqui " ou "- Olá, gente". Os
símbolos literários são ainda mais nocivos por não serem tão facilmente
reconhecidos como sendo simbólicos. Os empregados por Dante são os melhores,
mas em contrapartida, ficamos horrorizados com seus anjos. Seus diabos, como
acertadamente observou o Ruskin, por sua ferocidade, despudor e rebeldia são
muito mais semelhantes àquilo que na realidade deveriam ser do que na
imaginação de Milton. Os demônios pensados por Milton, por causa da majestade e
elevação poética que os adorna, tem causado grandes males (aliás, seus anjos
devem demasiado a Homero e a Raphael). Entretanto, a imagem mais perniciosa de
todas nos é dada através do Mefistófeles de Goethe. E Fausto, e não
Mefistófeles, quem mostra verdadeiramente o egocentrismo impiedoso insano e
feroz concentrado em si mesmo, que é a própria característica do Inferno.
Mefistófeles, por ser caracterizado como um espirituoso, civilizado, sagaz e
facilmente adaptável, tem colaborado para que se alimente a falsa idéia de que
o mal proporciona (de alguma maneira) a liberdade, quando já se tornou patente
que o que ocorre é justamente o inverso. Os homens conseguem evitar a prática
de erros cometidos por alguém importante; fiz o possível para que meu
simbolismo não caísse no erro de Goethe, pelo menos, porque trabalhar com
humorismo exige certo sentido de proporção, alem da capacidade de alguém
contemplar-se a si mesmo como se estivesse olhando pelos olhos de outra pessoa
externa. Podemos responsabilizar qualquer ser que haja pecado pelo orgulho por
um oceano de culpas, mas não por esta. Chesterton disse que Satanás caiu pelo
efeito da Força da Gravidade. Podemos imaginar o Inferno como sendo uma
situação em que todos estão preocupados com conceitos como dignidade e
progresso pelos próprios esforços, onde todos se sentem ofendidos, e se debatem
tomados por paixões fatais como a inveja, a vaidade e o ressentimento. E estes
são apenas alguns dos elementos. Admito que prefiro morcegos do que burocratas.
Vivo nesta época de grandes e "brilhantes" administradores. Os
maiores males já não acontecem nos perversos "redutos criminosos",
que Dickens tanto apreciava descrever. Nem sequer nos hediondos campos de concentração. Nestes campos, apenas temos visão dos
resultados de outros males que foram praticados antes, causando estes mesmos
campos. A verdade, porem, é que os maiores males e crimes são criados,
arquitetados e executados em escritórios bem limpos, atapetados, refrigerados e
bem iluminados por homens de colarinho branco, unhas bem cuidadas; estão sempre
bem barbeados e jamais precisam elevar seu tom de voz.
Por causa disso,
os símbolos que eu uso para falar
do Inferno se originam da burocracia de um estado onde a polícia domina ou do
ambiente característico de escritórios de certos estabelecimentos comerciais
terrivelmente imundos. Acho bem mais concreto e sugestivo. Milton diz que
"diabo maldito com diabo maldito mantém sólida concordância". Tudo
bem, mas como? Certamente não é pelos laços da amizade ou fraternidade verdadeiras,
pois qualquer ser que possa amar ainda não é um diabo. Mais uma vez, creio que
o Simbolismo que usei pareceu útil, pois me permitiu, por comparações terrenas
fazer uma boa idéia de outra sociedade que só se mantém por causa do medo e da
ambição. Superficialmente, as maneiras são normalmente delicadas, pois um
tratamento rude para com seu superior seria suicídio; e quando um superior
falasse com um subordinado, se o fizesse com rispidez ou rudeza, isto faria com
que os mesmos subordinados ficassem prevenidos antes que o chefe estivesse
pronto para dar a "facada nas costas". Com efeito, "cobra come
cobra" é o principio de toda a Organização Infernal. Todos desejam o
descrédito, a derrota e a ruína de todos os outros. Em resumo, todos se tornam
especialistas na propagação de falsidade e traição. As boas maneiras, as
expressões de cortesia e os "elogios formais" que trocam entre si
pelos "inestimáveis serviços prestados" são apenas uma casca de
todas estas coisas. De vez em quando, esta casca racha, e então aparece o
caldo fervente de seus ódios de um pelo outro. O simbolismo também me permitiu
livrar a mente da fantasia absurda de se admitir que os demônios estão
empenhados na busca desinteressada de algo a que damos o nome de Mal (com letra
maiúscula,mesmo). Em meu simbolismo, não haveria lugar para espíritos tão
desfigurados em seus objetivos. Os maus anjos (à semelhança dos maus homens)
tem espírito puramente prático. Eles tem dois motivos para isso. Primeiro: medo
da punição. Assim como os países ditatoriais (totalitários, se preferirem) tem
suas prisões políticas e campos de concentração, da mesma forma, o Inferno que
eu pinto contem Infernos mais profundos, que funcionam como "casas de
correção". O segundo motivo vem de uma certa espécie de fome.
Imagino que os demônios podem, no sentido espiritual, devorar-se uns aos
outros, e a nós também. Mesmo no contexto de vida humana, vemos a paixão
dominar (quase mesmo devorar) uma pessoa à outra. Isto faz com que toda a vida
emocional e intelectual do outro sejam a tal ponto apagadas que se reduzam a
meros complementos da própria paixão. O indivíduo passa então a odiar como se o
agravo fosse sobre si mesmo, devolver ofensas como se ele tivesse sido
ofendido, enfim, tem sua individualidade totalmente dissolvida, assimilando
desta forma a do objeto de sua paixão. Embora na Terra chamem isto de
"amor", imagino que passe longe do conceito de amor que Deus nos
legou (ver I Co 13). No Inferno, identifico este tipo de sentimento com a fome;
e neste Inferno, a fome é mais feroz e a satisfação desta mais viável.
Não havendo corpos, o espírito mais forte pode
realmente absorver o mais fraco, deleitando-se assim de modo permanente na
individualidade destruída do mais fraco. E por isso (suponho eu) que os diabos
desejam conquistar espíritos humanos, bem como os espíritos uns dos outros.
Também é por isto que Satanás anseia por todos os membros de seu exército e por
todos que nascem de Eva e mesmo (ainda que pretensiosamente) pelos exércitos do
Céu. O sonho que ele acalenta é o do dia em que tudo esteja em seu interior, de
modo que qualquer um que disser "Eu" só possa dizer através dele.
Poderíamos compará-lo à aranha inchada, em contraposição à bondade infinita
segundo a qual Deus torna homens em servos, e estes servos em filhos, de modo a
serem no final reunidos a Ele, não como "almas absorvidas", mas como indivíduos
aprimorados, desfrutadores de todo o deleite e prazer que a presença de Deus proporciona. Em síntese, Deus se compraz em pedir
ao homem sua individualidade, mas tão logo o homem a cede, o maior prazer de
Deus é devolvê-la aprimorada. Deus bate à porta, ao passo que o Diabo a
arromba. O Espírito Santo enche, os diabos possuem. Assim mesmo, como acontece
nos contos dos irmãos Grimm, estas coisas são apenas criações de fantasia e
simbolismo. E o motivo pelo qual minha opinião pessoal sobre os diabos, mesmo
precisando ser colocada, não tem maior importância para o leitor destas Cartas.
Para os que participam de meus conceitos, meus diabos serão simples símbolos de
uma realidade concreta; para outros, eles serão personificações abstratas, de
forma que o livro terminará sendo uma alegoria. Fará assim pouca diferença o
modo pelo qual você o leia, pois o propósito das Cartas não é fazer
especulações em torno da vida diabólica, e sim lançar luzes, partindo de um
novo ângulo (no caso, o do Inimigo) sobre a vida dos homens. Disseram-me que
não sou o primeiro neste campo, e que alguém no século XVIII, escreveu cartas
atribuindo-as ao diabo. Não tive oportunidade de ver estas cartas. Mas é verdade
que devo algumas posições a outros autores. Fico satisfeito de reconhecer o
débito com "Confissões de uma mulher bem intencionada" de autoria de
McKenna. Os pontos concordantes podem não estar bem claros, mas é fácil
verificar a mesma inversão moral: os pretos ficam brancos e os brancos ficam
pretos e o humor que existe em falar através de uma "pessoa"
totalmente desprovida de humor. Suponho que minha idéia relativa ao canibalismo
espiritual, com toda a probabilidade deve alguma coisa às cenas horrendas de
"absorção" que se encontram descritas nas "Viagens para
Arcturus" de David Lindsay. Os nomes que escolhi para os demônios também
tem dado margem para muitos comentários, todos eles errados. A verdade é
que eu só quis dar-lhes um aspecto horripilante (como no sentido espiritual e
intelectual eles tem) e - talvez isso se deva também a algumas idéias de
Lindsay - usando para isso o som. Uma vez que um nome tivesse sido inventado,
eu podia imaginar o que quisesse (sem nenhuma autoridade, concordo, mas nenhum
homem a teria mais que eu) quanto às associações psicológicas que um nome feio
pudesse dar de um ser de essência feia. Freqüentemente recebi solicitações
e sugestões para escrever mais cartas, mas, por muitos anos, não tive a
menor inclinação para fazer algo no sentido. Embora admita que me custou muito
pouco esforço escrever as Cartas, também é fato que nada do que escrevi me
trouxe tão pouco prazer. Foi fácil porque o trabalho de escrever cartas
atribuindo-as a um diabo, uma vez escolhido o método, chega a ser mecânico, ou
seja, o próprio método fornece os assuntos. Os assuntos se sucedem de
tal forma que podemos escrever milhares de páginas, bastando para isso se
deixar levar pela inspiração. Entretanto, embora seja fácil levar a mente a
raciocinar diabolicamente, isso não proporciona prazer, ou pelo menos
não por muito tempo. O esforço implicaria em uma estafa espiritual, pois o
mundo em que eu tinha que me projetar enquanto sublimava a mente de Screwtape
era todo pó, areia, fome, sede e cócegas. Todos os vestígios de beleza,
frescura e verdade tinham de ser excluídos, e isso quase me sufocou antes mesmo
de chegar ao fim. Outra coisa que me deixou aflito em tal livro foi ele não ser
uma obra original a ponto de ninguém poder escrever algo semelhante.
Idealmente, a
orientação
prestada por Screwtape a Wormwood deveria ser contrabalançada pelo conselho de
um Arcanjo a um anjo protetor do paciente. Sem isto, o quadro da vida humana parece
estar inclinado para o lado adversário de Deus. Entretanto, quem poderia
suprir tal deficiência? Mesmo que alguma pessoa - que teria que ser muito
melhor que eu - chegasse a escalar as alturas celestiais necessárias, qual
seria o estilo que se teria que empregar? Porque este estilo teria de ser tão
sublime quanto o assunto. Não bastaria ministrar conselhos, cada sentença teria
de emanar o aroma celestial. E atualmente, mesmo que se pudesse escrever em
prosa igual à de Trahrnes, não se lhe permitiria fazê-lo, uma vez que os
ditames do funcionalismo tem inabilitado a literatura relativamente à metade
das funções que lhe pertencem. (No fundo, todo ideal estilístico não só cita
normas quanto a maneira como as coisas devem ser ditas, mas também
relativamente as próprias coisas que se nos permite dizer). Então, à medida em
que os anos decorriam e a experiência sufocante acarretada pela confecção das Cartas se enfraqueceu na memória,
começaram a ocorrer-me algumas reflexões sobre pontos aqui e ali que demandavam
a intervenção dum Screwtape . Estava resolvido a não escrever nenhuma outra
carta. Surgiu-me vagamente a idéia de algo como uma preleção ou como um
estudo-idéia ora esquecida, ora relembrada, mas que nunca chegava a ser
escrita. E foi então que me chegou às mãos um convite do Saturday Evening Post
que me fez por mãos à obra.
MAGDALENA COLLEGE,
CAMBRIDGE
18 de Maio de
1960. CLIVE S. LEWIS
CARTA Número I
Meu Caro
Wormwood:
Prestei bastante
atenção no que você disse acerca
de conduzir as leituras do seu paciente, tomando cuidado para que ele
assimile bastante daquele amigo materialista. Mas você não está sendo um
pouquinho ingênuo nesta tarefa? Parece-me que você está se convencendo (não sei
baseado em quê) que através da argumentação você pode afastá-lo da influência
do Inimigo. Isso até seria aceitável, se seu paciente tivesse vivido alguns
séculos atrás, pois naquele tempo os humanos ainda sabiam distinguir quando uma
coisa havia sido provada ou não. E se tivesse sido, os homens a aceitavam e
mudavam sua maneira de agir e de pensar, somente seguindo uma corrente de
raciocínio. No entanto, devido à imprensa semanal e a armas semelhantes,
alteramos bastante este contexto. Parta do princípio que sua vítima já se
acostumou desde criança a ter uma dúzia de filosofias diferentes dançando em
sua cabeça. Ele não usa o critério de "VERDADEIRO" ou
"FALSO" para conferir cada doutrina que lhe apareça (seja do Inimigo
ou nossa). Ao invés disso, ele verifica se a doutrina é "Acadêmica"
ou "Prática", "Antiquada" ou "Atual", " Aceitável"
ou "Cruel". O jargão e a expressão feita (e não o argumento lógico)
são seus melhores aliados para mantê-lo longe da Igreja. Não perca tempo
tentando levá-lo a concluir que o Materialismo seja verdadeiro (sabemos que não
é). Faça-o pensar que ele é Forte, Violento ou Corajoso - ou ainda, que é a
Filosofia do Futuro! Este é o tipo de coisas que lhe despertarão a atenção.
Percebo que você tem intenções produtivas, mas há um problema muito grande
quando tentamos persuadir o paciente a passar para nosso lado pelo emprego de
argumentos e lógica: isto conduz toda a luta para o campo do Inimigo, que para
azar nosso também sabe argumentar (e melhor do que nós). Por outro lado, no que
diz respeito à propaganda prática (ainda que falsa) que lhe sugeri, Ele tem se
mostrado por séculos bem inferior ao Nosso Pai lá de Baixo. Pela pura
argumentação, você despertará o raciocínio do paciente; uma vez que a razão
dele desperte, quem poderia prever o resultado? Veja que perigo! Mesmo que uma
cadeia de raciocínio lógico possa ser torcida de modo a nos favorecer, isso
tende a acostumar o paciente ao hábito fatal de questionar as coisas,
analisando as mesmas com visão geral, e desviando-se das experiências ditas
"concretas", que na verdade são apenas experiências sensíveis e
imediatas. Sua maior ocupação deve ser portanto a de prender a atenção da
vítima de modo a jamais se libertar da corrente do "Se eu vejo,
creio!". Ensine-o chamar esta corrente "Vida Real", e jamais
deixe-o perguntar a si próprio o que significa "Real". Lembre-se que
ele não é puramente espírito como você. Nunca tendo sido humano (E abominável a
vantagem do Inimigo neste ponto) você não percebe o quanto os humanos são
escravizados à rotina. Uma vez, tive um paciente, ateu convicto, que costumava
fazer pesquisas no Museu Britânico. Um dia, estando ele a ler, notei que seu
pensamento esvoaçava com tendência a um caminho errado. Com efeito, o Inimigo
ali estava ao seu lado, naquele momento. Antes que desse por mim, vi o meu
trabalho de vinte anos começando a desmoronar. Se tivesse entrado em pânico e
tentado argumentar, eu estaria irremediavelmente perdido. Mas não fui tolo a
esse ponto! Recordei da parte da vítima que mais estava sob meu controle e
lembrei-lhe que estava na hora de almoçar. O Inimigo acho lhe fez uma
contra-sugestão (você bem sabe como é difícil acompanhar aquilo que Ele lhes
diz) de que a questão que lhe surgira na mente era mais importante do que o
alimento. Penso ter sido essa a técnica do Inimigo porque quando lhe disse
"Basta! Isto é algo muito importante para se meditar num final de manhã...",
vi que o paciente ficou satisfeito. Assim, arrisquei dizer: "E muito
melhor se você voltar ao assunto depois do almoço e estudar o problema com
cabeça mais fresca. Não havia acabado a frase e ele já estava no meio do
caminho para a rua. Na rua, a batalha estava ganha. Mostrei-lhe um jornaleiro
gritando "Olha o Jornal da Tarde", e o Ônibus No.73 que ia passando,
e antes que ele tivesse dado muitos passos, eu o tinha convencido de que sejam
lá quais forem as idéias extraordinárias que possam vir à mente de alguém
trancado com seus livros, basta uma dose de "Vida Real" (que ele entendia como o ônibus e o jornaleiro gritando) para persuadi-lo
que "Aquilo Tudo" não podia ser verdade de jeito nenhum. A vítima
escapara por um fio, e anos mais tarde, gostava de se referir àquela ocasião
como "senso inarticulado de realidade, que é o último salva-vidas contra
as aberrações da simples lógica". Hoje, ele está seguro, na Casa de Nosso
Pai. Começa a perceber ? Graças a processos que ensinamos em séculos passados,
os homens acham quase impossível crer em realidades que não lhes sejam
familiares, se estão diante de seus olhos fatos mais ordinários. Insista pois
em lhe mostrar o lado comum das coisas. Acima de tudo, não faça qualquer
tentativa de usar a Ciência (digo, a verdadeira) como defesa contra o
Cristianismo. Certamente, as Ciências o encorajariam a pensar em realidades que
a visão e o tato não percebem. Tem havido tristes perdas para nós entre os
cientistas da Física. Se a vítima teimar em mergulhar na Ciência, faça tudo que
você puder para dirigi-la para estudos econômicos e sociais, acima de tudo, não
deixe que ela abandone a indispensável "Vida Real". Mas o ideal é não
deixar que leia coisa alguma de Ciência alguma, e sim lhe dar a idéia de que já
sabe de tudo e que tudo que ele assimila das conversas nas "rodinhas"
são resultados das "descobertas mais recentes". Não se esqueça que
sua função é confundir a vítima. Pela maneira como alguns de vocês, diabos
inexperientes falam, poderiam até pensar (que absurdo!) que nossa função fosse
ensinar!
Seu afetuoso tio,
Screwtape
CARTA Número II
Meu Caro
Wormwood:
Vejo, com muito desgosto que
sua vítima tornou-se um cristão. Nem por sonho alimente a esperança de que
poderá escapar aos castigos normais; com efeito, em seus melhores momentos,
espero que você nem mesmo pense em tal coisa. Enquanto isso é preciso que
façamos o possível para remediar essa situação tão indesejável. Não é
necessário cairmos no desespero, conta-se por centenas esses convertidos em
idade adulta que foram reconquistados, depois de uma breve estada nos arraiais
do Inimigo e agora se encontram conosco. Todos os hábitos do paciente, tanto
intelectuais quanto físicos, estão ainda a nosso favor. Aliás, um dos maiores
aliados que temos hoje é a própria Igreja. Não me interprete mal. Não me refiro
à pestilenta Igreja que vemos difundida através dos séculos por toda parte com
suas raízes na Eternidade, terrível como um invencível exército com suas
bandeiras. ESSE espetáculo confesso que traz insegurança e inquietação
aos mais corajosos entre nós. Para nossa sorte, ESTA Igreja é inteiramente
invisível aos olhos humanos. Tudo que seu paciente pode contemplar é o prédio
inacabado, (pretendendo um estilo gótico) em seu bairro novo. Entrando ali, o
paciente vê o dono da quitanda local, com uma expressão de bem-aventurança no
rosto, e que se apressa em lhe oferecer um livrinho já bem gasto
contendo uma liturgia que ninguém consegue entender mais, e mais um outro
livrinho caindo aos pedaços que contem vários textos (corrompidos, por sinal)
de poemas religiosos (a maioria, péssimos) e ainda por cima, impressos em letra
miúda (chego a pensar que nós os escrevemos) de forma a dificultar ao máximo a
leitura. Ao assentar-se num dos bancos e olhar ao redor, o paciente vê
justamente os vizinhos que até então evitara. Você deverá acentuar bem na
imaginação do paciente alguns detalhes daqueles vizinhos. Faça com que sua
mente fique a flutuar entre uma expressão como o corpo de Cristo e os rostos
concretos que ele pode ver nos bancos próximos. Interessa muito pouco saber
qual seja, na realidade, o tipo de pessoas acomodadas naqueles outros bancos.
Pode ser quer você saiba que um de entre eles é ferrenho batalhador nas
fileiras do Inimigo. Não há problema. Esse paciente, graças a Nosso Pai lá de
Baixo, não passa de um tolo. Contanto que alguns dos seus vizinhos ali estejam
cantando desafinados, ou usem sapatos barulhentos, ou tenham dupla papada, ou
estejam trajados com ternos antiquados, o paciente poderá logo admitir muito
facilmente que a religião de tais semelhantes terá de ser, portanto, de certa
forma, ridícula. No estágio em que ele se encontra, compreender o conceito que
faz dos cristãos lhe parece espiritual; na verdade, é um conceito
totalmente imaginário. Sua mente está cheia de togas e sandálias e armaduras e
pernas nuas (restos duma película situada no século I, de modo que, o simples
fato de que outras pessoas na igreja estejam a trajar roupas modernas
constitui-se numa real - embora seja isso inconsciente - dificuldade para ele.
Nunca deixe que essa dificuldade chegue à tona: nunca permita que ele inquira a
respeito de como esperava que esses cristãos fossem. Faça força por conservar
tudo confuso em sua mente agora, pois assim você terá em que distrair-se por
toda a eternidade, dando-lhe o tipo de esclarecimento que o Inferno oferece.
Aproveite-se quanto possível, então, da decepção, ou do forte contraste que
com certeza virá ao paciente no decorrer das primeiras semanas de
freqüência à igreja. O Inimigo permite que o referido desapontamento ocorra na
fase inicial de todos os esforços dos seres humanos. Ocorre quando o
adolescente que experimentara verdadeiros enleios ao ouvir as histórias da
Odisséia passa depois a estudar, com afinco, a língua grega. Ocorre quando os
noivos finalmente se casam e começam a real tarefa de aprender a viver junto.
Em todas as áreas da vida, esse desapontamento assinala a transição necessária
entre as aspirações sonhadas e a realização trabalhosa. O Inimigo se expõe a
esse risco porque acalenta a curiosa fantasia de tornar esse nojento vermezinho
humano a que Ele chama de seus livres amigos e servos - filhos é a palavra que
Ele emprega em sua preferência costumeira por degradar todo o mundo espiritual
mediante relações não naturais que estabelece como animais bípedes humanos. À
liberdade dos referidos animais Ele, por conseqüência, recusa-se a
atraí-los só pelas afeições e pela força de hábito a qualquer dos objetivos que
intente com eles. Ele os deixa "agir por si mesmos" (não é
incoerente?) Mas felizmente, nisto está uma ótima oportunidade para nós (se
aproveitada, claro). Como assim, você diria? Fácil: Se eles saem destes apertos
iniciais sem se "arranhar", se tornam mais independentes de suas
emoções, e com isso, fica muito mais difícil tentá-los. Até aqui, tenho escrito
longamente sempre imaginando que as pessoas sentadas nos demais bancos não dão
motivos específicos para o tal desapontamento. Com efeito, se derem motivos -
se o paciente souber que aquela mulher de chapéu esquisito é profundamente viciada
em jogos de azar, ou que o indivíduo dos sapatos barulhentos é avarento e
ganancioso - então seu trabalho como tentador fica muito mais fácil. Você só
precisa banir da mente da vítima esta linha de reflexão: "Se eu, sendo o
que sou, posso aceitar que até certo ponto sou um cristão, quem poderia
distinguir os vícios destas pessoas nos bancos aí ao lado e provar que a
religião deles não passa de hipocrisia e mero convencionalismo?". Você
pode estar perguntando se é possível evitar esse tipo de reflexão, mesmo se
tratando de uma mente humana. Saiba que é sim, Wormwood, pode acreditar!
Manipule-o corretamente e verá que isto jamais lhe passará pela cabeça. Seu
paciente não terá ainda tempo suficiente de convivência com o Inimigo para
aprender acerca da humildade real. O que diz, mesmo quando de joelhos,
sobre sua vida pecaminosa, é mera conversa de papagaio. No fundo, ele ainda
acha que no balanço da conta-corrente do Inimigo a sua situação é mais
favorável, pois ele consentiu em se deixar converter, e acha uma extrema prova
de humildade e desprendimento o fato de freqüentar a igreja com essa
"corja" de semelhantes medíocres. Faça tudo para mantê-lo o maior
tempo possível neste estado de pensamento.
Afetuosamente,
seu tio.
Screwtape
CARTA Número III
Meu caro
Wormwood:
Alegra-me
sobremodo o que você me diz a
respeito das relações desse homem com sua mãe. Mas você tem de tirar maior
vantagem: pode ser que o Inimigo esteja operando de dentro para fora,
conduzindo o paciente gradativamente à adoção dos padrões novos propostos à sua
conduta de modo que a qualquer momento possa fazê-lo submisso à antiga senhora.
E preciso que você seja o primeiro a entrar. Ponha-se em contato com nosso
colega Absinto, que tem aquela mãe a seu cargo, e vocês dois procurem arquitetar
no íntimo do paciente, um hábito eficiente e propício, de provocar mútuos
aborrecimentos: chatices diárias. Os métodos que passo a sugerir são muito
úteis:
1. Mantenha a
mente da vítima
presa à vida interior dele mesmo, posto que sua atenção se volta presentemente
para aquela versão expurgada dos referidos estágios de amadurecimento da alma,
que é tudo quanto você lhe deve conceder que contemple. Encoraje isto!
Mantenha-lhe a mente abstraída relativamente aos deveres mais elementares por
insistir em que ela se dirija só para os deveres mais avançados e mais
espirituais. Faça mais grave essa característica humana que são o horror e a
negligência para com as coisas mais simples. Você poderá levá-lo a condição na
qual se torna possível o auto-exame durante uma hora sem que fiquem descobertos
fatos a respeito de si mesmo que seriam absolutamente claros aos que tenham
convivido com ele no mesmo escritório.
2. Sem dúvida é quase impossível impedir-lhe que
interceda por sua mãe, mas temos meios para fazer com que tal intercessão fique
nula. Certifique-se de que as orações sejam sempre muito espirituais, de modo
que o paciente se preocupe incessantemente com o estado da alma de sua mãe e
não com seus "reumatismos". Duas são as vantagens que daí provem. Em
primeiro lugar, a atenção do paciente ficará presa naquilo que ele mesmo considera
como sendo pecados dela, por cujas expressões, com alguma diligência que você
exerça, ele poderá ser induzido a definir esses pecados maternos como ações
dela que lhe pareçam irritantes ou inconvenientes. Assim você poderá manter
"arranhantes" todos os problemas mais diários, mesmo quando ele
estiver prostrado de joelhos. A operação não é das mais complicadas e você irá
achá-la bastante recreativa. Em segundo lugar, desde que suas idéias acerca da
alma da mãe são muito cruas e freqüentemente erradas, ele estará de uma certa
forma, orando por uma pessoa imaginária, e sua tarefa é fazer com que a pessoa
imaginária se distancie mais e mais da mãe real - a velha senhora de língua
afiada no café da manhã. Com o passar do tempo, você poderá alargar esta
distância a tal ponto que nenhum pensamento ou sentimento vindo de suas orações
possa fluir para a personagem real. Já tive pacientes tão bem manipulados que
poderiam mudar num instante de uma apaixonada oração pelas "almas" de
sua esposa ou filhos para o espancamento e insulto dos familiares reais sem
constrangimento algum.
3. Quando dois
seres humanos viveram juntos por muito tempo, usualmente aparecem tons de voz e
expressões
faciais de um que quase enlouquecem de fúria ao outro. Trabalhe em cima disso!
Traga à lembrança de seu paciente aquele especial arquear de sobrancelhas que
ele aprendeu a detestar desde a infância, e convença-o de quanto ele detesta
este trejeito. Faça com que ele assuma que ela sabe perfeitamente o quão
irritante é esta mania e por isso mesmo faz a tal careta de propósito só para
atormentá-lo - se você souber trabalhar, ele nunca desconfiará da imensa
improbabilidade de tal presunção. E é claro, nunca o deixe perceber que alguns
tons de voz e expressões faciais dele a aborreçam da mesma forma. Já que ele
não pode se ver ou ouvir pela ótica dela, isto é de fácil execução.
4. Na vida doméstica civilizada, aparecem expressões que
aparentariam total inocência se escritas no papel (ou seja, as palavras em si
não são ofensivas), mas ditas com certo tom de voz, ou num dado momento ou com
certo sorriso, assemelham-se a autênticas bofetadas na cara. Visando manter
este jogo bem aceso, você e o Absinto devem estudar todos os detalhes a fim de
manter esta dupla de idiotas com também duplo padrão de personalidade e
comportamento. Seu paciente deverá cobrar que tudo que ele disser seja tomado
ao pé da letra e julgado simplesmente pelo teor das palavras, ao mesmo tempo em
que ele faz exatamente o oposto com tudo que a coroa disser, julgando cada tom,
gesto, expressão facial como formas veladas de agressão. Ao mesmo tempo,
Absinto deverá encorajá-la à mesma atitude. Assim, depois de cada briga, cada
um deles poderá sair convencido (ou quase convencido) de que estava totalmente
inocente. Você sabe aquele tipo de papo: "Eu só pergunto a que horas irá
sair o jantar e ela fica toda nervosinha!" Desde que este hábito tenha
sido bem estabelecido, você terá a divertidíssima situação em que um humano diz
coisas que visem ofender ao seu próximo e depois se mostrem indignados quando o
próximo se manifesta de fato ofendido. Finalmente, conte-me algo sobre a
posição espiritual da velhota. Ela está ciumenta devido ao novo fator na vida
do filho? Estará desgostosa de que ele haja aprendido de terceiros - e tão
tardiamente - o que ela supõe ter dado a ele desde a mais tenra infância? Ela
considera que ele estaria fazendo demasiado alarde em torno do caso? Ou que ele
aceitou de estranhos com a maior facilidade o que ela nunca conseguiu
inculcar-lhe? Lembre-se do irmão mais velho na Parábola do Inimigo...
Afetuosamente,
seu tio
Screwtape
CARTA Número IV
Meu Caro
Wormwood:
As sugestões amadorísticas em sua última carta advertem-me
que é chegada a hora de escrever a você sobre o doloroso assunto da
oração. Você bem poderia ter poupado o comentário tipo "mostraram-se
singularmente infelizes" sobre minhas advertências acerca das
orações dele por sua mãe. Isto não é o tipo de coisa que um sobrinho devesse
escrever a seu tio - nem um tentador aprendiz ao sub-secretário de um
departamento. Sua postura revela também um pouco recomendável desejo de fugir à
responsabilidade; você precisa aprender a pagar por seus próprios desacertos. A
melhor coisa, quando possível, é manter o paciente totalmente fora da intenção
séria de orar. Quando o paciente é um adulto recentemente reconciliado
ao partido do Inimigo, como é o caso do seu homem, o melhor é encorajá-lo a se
lembrar (ou pensar que se lembra) da natureza de conversa de papagaio em suas
orações de infância. Em contraposição a isso, ele deve ser persuadido a aspirar
algo inteiramente espontâneo, mais íntimo, informal e sem sistematização; e o
que isso irá realmente significar para o principiante consistirá em um esforço
para produzir em si mesmo um estado vagamente devocional, no qual a real
concentração de vontade e inteligência simplesmente não existem. Um de seus
poetas, Coleridge, deixou registrado que não orava "com movimentos dos
lábios e joelhos dobrados", mas simplesmente "dispunha seu espírito a
amar" e entregava-se a um "sentimento de súplica". Este é
exatamente o tipo de oração que queremos; e desde que o referido tipo sustenta
uma certa semelhança com a oração silenciosa que é praticada por aqueles que já
estão bem adiantados no serviço do Inimigo, pacientes "amadurecidos"
ou preguiçosos podem ser conduzidos completamente nesta sistemática por longo
tempo. No mínimo, podemos persuadi-lo de que a posição corporal não faz
diferença em suas orações; pois eles constantemente se esquecem de que são
animais, e por isso tudo que seus corpos fazem afeta suas almas e
espíritos.
É divertido como
os mortais sempre nos pintam como "colocando coisas em suas mentes":
na realidade, nosso melhor trabalho consiste justamente em evitar que certas
coisas cheguem a suas mentes. Se isto tudo falhar, você deverá retroceder em um sutil mau
encaminhamento de sua intenção. Sempre que os homens estão procurando fazer a
vontade do Inimigo nós estamos derrotados, mas há formas de evitar que eles
façam assim. A mais simples destas formas é desviar a contemplação deles
do Inimigo para eles próprios. Mantenha-os na introspecção de suas próprias
mentes e na tentativa de produzir sentimentos "nobres" interiores por
sua própria vontade pessoal. Quando, por exemplo, eles forem pedir ao Inimigo o
dom da compaixão, deixe-os, ao invés disso, iniciar uma tentativa de produzir
sentimentos de compaixão por suas próprias energias e não se aperceberem que
é isso que estão fazendo. Quando eles começarem a orar por coragem, dê-lhes uma
convicção de serem dotados de bravura. Quando eles disserem que estão orando
pelo perdão, leve-os a já se sentirem perdoados. Ensine-os a avaliar a eficácia
de cada oração pelo seu sucesso em produzir o sentimento desejado; e nunca
permita que eles suspeitem que o sucesso ou fracasso deste gênero depende de
como eles estejam no momento, seja dispostos ou doentes, lépidos ou cansados.
No entanto, o Inimigo não estará ocioso neste ínterim. Aonde houver oração, há
sempre o perigo de uma ação Sua imediata; Ele é cinicamente indiferente à
dignidade de Sua posição, e à nossa, como puramente espíritos, destarte,
estando os animais humanos prostrados sobre seus joelhos, Ele lhes passa o
auto-conhecimento de uma forma completamente indigna (quase sem-vergonha). Mas
mesmo que Ele o derrote em sua primeira tentativa, nós ainda temos uma arma
sutil. Os humanos não possuem essa percepção direta do Inimigo, a qual nós,
infelizmente, não podemos evitar.Os mesmos animais nunca conheceram essa luminosidade mortífera, que dilacera e esse resplandecer abrasador
que se torna um fundo de dor interminável em nossa existência. Se olhar para o
interior da mente de seu paciente quando ele está orando, jamais encontrará
nada dAquilo. Se você, ainda, examinar o objeto ao qual ele serve, irá
encontrar o que seria um objeto complexo, contendo muitos ingredientes
completamente ridículos. Ali haverão imagens derivadas de figuras do Inimigo
como Ele apareceu durante o pouco digno de crédito episódio conhecido como A
Encarnação: também há imagens vagas - de todo selvagens e infantis-
associadas às duas outras Pessoas da Trindade. Haverá mesmo algo de sua própria
reverência (e das sensações corporais que a acompanham) que busca construir um
objeto a ser associado ao Objeto real de adoração. Eu tenho conhecido casos
onde o que o paciente chamava de seu "Deus", estava na verdade
localizado ao alto e à esquerda do forro no quarto de dormir, ou dentro da
própria cabeça, ou em um crucifixo na parede. Mas seja lá qual for a natureza
do objeto fabricado pelo paciente, você tem que manter o alvo de sua oração
NISTO - na coisa que ele mesmo fez e nunca na Pessoa que o fez. Você pode até
encorajá-lo a dirigir grande importância à correção e melhoramento do objeto de
seu culto, bem como manter o dito objeto sempre em sua mente, durante qualquer
oração. Pois se ele vier a fazer a distinção, se ele conscientemente dirigir
suas orações "Não ao que eu penso que Tu és, mas ao que Tu sabes
ser", nossa situação será, no momento, desesperadora! Desde que todos os
seus pensamentos e imagens tenham sido descartados para longe, ou se retidas,
retidas com o conhecimento total de sua natureza meramente subjetiva, e o homem
passe a confiar na completamente real, externa e invisível Presença que se
encontra com ele no quarto, e que jamais será dele conhecida tanto quanto o
conhece - Ufa ! -danos incalculáveis poderão vir sobre nós. A fim de
evitar esta situação - esta real pureza de alma na oração - você será auxiliado
pelo aspecto de que os seres humanos não desejam tanto esta pureza quanto eles
mesmos supõem. Permanece sempre o medo de receberem mais do que haviam
reivindicado receber.
Seu afetuoso tio
MORCEGAO
CARTA Número V
Meu Caro
Wormwood:
E um pouco
decepcionante esperar um relato detalhado acerca do seu trabalho e
receber, ao contrário,
aquela breve rapsódia que você enviou à guisa de carta. Você diz que está
"delirante de alegria" porque os humanos europeus iniciaram outra de
suas guerras. Eu percebo muito bem o que tem acontecido com você...
Você não está delirando, está somente embriagado.
Passeando pelas entrelinhas exageradas do seu relatório sobre a noite passada
em claro pelo paciente, posso reconstituir seus estados mentais com uma
razoável exatidão. Pela primeira vez em sua carreira você prova do vinho que é
a recompensa para todo o nosso esforço: a angústia e a perplexidade de uma alma
humana - e isto subiu à sua cabeça. E difícil para mim reprová-lo por isso. Não
espero cabeças amadurecidas sobre ombros ainda jovens. O paciente respondeu a
alguma de suas aterrorizantes expectações para o futuro? Você trabalhou em
alguns repentes saudosos do seu passado feliz? Alguns sutis pavores no íntimo
do estômago dele, não foi? Você tocou seu violino de maneira estupenda, não?
Bem, bem, tudo isso é muito natural... Mas lembre-se bem, Wormwood, que a
obrigação vem antes da diversão! Se alguma negligência ou desleixo de sua parte
culminar na perda de nossa vítima, você ficará eternamente sedento por este
trago refrigerante de que você se deliciou com uma primeira gota. Se, por outro
lado, pela aplicação calculada e fria de seus esforços aqui e agora você puder
"assegurar" sua alma, ela ir ser sua eternamente - uma vida qual
cálice transbordante de desespero, horror e perplexidade que você poder levar
aos lábios quantas vezes quiser. Apenas não permita que nenhuma excitação
passageira o distraia de seu real trabalho de minar o alicerce de fé do
paciente, bem como evitar nele a formação de virtudes. Mande-me (e sem falta!)
na próxima carta um relatório completo das reações do paciente à guerra, afim
de que consideremos o melhor a fazer; torná-lo um extremista patriota ou um
ardente pacifista. Existe toda a sorte de possibilidades. Mas de antemão, já o
previno a não esperar grande coisa de uma guerra. Concordo que uma guerra é
recreativa. O medo e sofrimento imediato dos humanos é um legítimo e agradável
refrigério para nossa miríade de ocupados trabalhadores. Mas que benefício
permanente isso pode nos dar se não pudermos conduzir almas para Nosso Pai Lá
de Baixo? Quando vejo o sofrimento temporário de humanos que finalmente nos
escapam, sinto como se me tivessem permitido provar o couvert de um rico
banquete e impedido de saborear o resto. E pior do que se nem tivesse provado!
O Inimigo, fiel a seus bárbaros métodos de guerrear-nos, permite-nos (é
indecente!) ver a curta miséria de Seus favoritos somente para provocar-nos e
atormentar-nos zombando da nossa incalculável fome, a qual durante a presente
fase do grande conflito, Seu bloqueio nos impõe. Vamos, então pensar mais em
como usar do que nos divertir com esta guerra européia. Pois a guerra tem
algumas características próprias, que por si só, não estão a nosso favor.
Podemos esperar por muita crueldade e depravação. Mas se não formos cautelosos,
teremos o desprazer de ver milhares de vidas se voltando para o Inimigo dentre
suas tribulações, enquanto dezenas de milhares, que não chegarão a ir tão
longe, irão constantemente desviar a atenção de si mesmos para valores e causas
que acreditam serem elevados e dignos. Eu sei que o Inimigo desaprova muitas
destas causas. Mas é aí mesmo que Ele mostra sua má-fé e deslealdade!
Ele freqüentemente recompensa humanos que dedicam e dão suas vidas por causas
que Ele mesmo considera ruins, com a monstruosa sofisma de que os humanos
pensavam estar fazendo o que era bom, e seguiam o melhor caminho que
conheciam...
E realmente execrável! Passar por cima de tudo que se pensa por
conveniências. Considere também que mortes indesejáveis podem acontecer durante
uma guerra: Homens são mortos em lugares onde já sabem
poder morrer a qualquer instante e, portanto se pertencem às fileiras do
Inimigo, já vão preparados para morrer. Muito melhor seria para nós se todos os
seres humanos morressem dentro de lares luxuosos e caros, com médicos ao redor
que mentem, enfermeiras que mentem, amigos que mentem, conforme os treinamos,
para que dêem ao moribundo uma visão de vida mais longa do que terá,
estimulando-o a crer que a doença desculpa todos os excessos que passam a
cometer, e claro, se nossos agentes souberem trabalhar, imaginar que a presença
de um pastor ou obreiro do Inimigo possam revelar ao doente seu verdadeiro
estado. E quão desastrosa para nós é a lembrança contínua da morte que a guerra
oferece. Uma de nossas melhores armas, que é o mundanismo desenfreado, torna-se
completamente inútil. Durante uma guerra, até o mais ignorante dos humanos não
pode acreditar que viverá para sempre! Sei que o Pestilência e outros têm
encontrado ótimas oportunidades para bombardear a fé, no ambiente das guerras,
mas creio que tal visão de trabalho é exagerada. Os humanos do partido do
Inimigo tem sido suficientemente advertidos por Ele de que o sofrimento é parte
essencial do que Ele mesmo chama Redenção, de sorte que este tipo de f, que pode
ser destruído por uma guerra ou epidemia, bem, creio que nem vale a pena o
esforço de destruí-la. Estou falando agora do sofrimento disseminado por longo
tempo que uma guerra acarreta. Concordo que no exato instante de terror,
privação ou dor física você pode pegar seu homem, já que sua razão fica confusa
por algum tempo. Mas se ele por infelicidade se dirigir ao quartel-general
Inimigo, quase sempre Ele irá defendê-lo enviando prontamente um esquadrão de
guerreiros furibundos dos quais, se tiver um pingo de bom-senso, você fugirá
com toda a velocidade de que dispuser no momento.
Seu afetuoso tio
SCREWTAPE
CARTA Número VI
Meu Caro
Wormwood:
Fico encantado
ouvindo que a idade e profissão do seu
paciente permitem a possibilidade, ainda que não a certeza, de que ele seja
chamado para o serviço militar. Desejamos que ele fique na máxima incerteza, e
que sua mente fique cheia de aspectos contraditórios do futuro, para que cada
um desses aspectos provoque nele esperanças e receios. Não há nada como o
suspense e a ansiedade para levantar pela mente humana uma autêntica barricada
contra o Inimigo. Ele deseja homens ocupados com o que fazem, ao passo
que nós trabalhamos para deixá-los preocupados com o que irá acontecer a eles.
Seu paciente já terá a essa altura - concordo - absorvido a
noção de que deve submeter-se pacientemente à vontade do Inimigo. O que o
Inimigo quer dizer com isso é que o homem deve receber com resignação todas a
tribulação jogada sobre ele - as mesmas que produzem o presente estado de suspense
e ansiedade. E nesta ótica que o paciente deve dizer "Seja feita a Tua
vontade!", e no tocante à responsabilidade diária de suportar esse fardo,
ele deverá pedir que lhe seja dado o pão de cada dia. E seu dever cuidar para
que o paciente nunca imagine o seu presente medo como uma cruz que lhe está
destinada, mas sim gaste todo o tempo possível com os temores que o assombram.
Aja no sentido de que o paciente considere tudo como verdadeiras cruzes;
deixe-o a pensar que já que elas não tem nada a ver uma com a outra, que não
podem todas lhe acontecer ao mesmo tempo, e portanto, treine-o para praticar a
resignação e paciência pelas provações muito antes que elas tenham sequer
começado a acontecer. Pois a real resignação para uma dúzia de coisas
diferentes (e imaginárias) é quase impossível, e o Inimigo não se mostra lá
muito interessado nas pessoas que tentam conseguir essa "virtude". A
resignação por sofrimentos reais e presentes, ainda quando o sofrimento é
formado apenas por medo, é muito mais facilmente socorrida pela ação direta do
Inimigo.
Uma importante
lei espiritual está contida
aqui. Já lhe expliquei que você pode enfraquecer suas orações pelo desvio de
suas atenções do Inimigo Real para os estados de mente que ele alimenta com
relação ao Inimigo. Por outro lado, é extremamente mais fácil assenhorear-se do
medo quando a mente do paciente está desviada do objeto amedrontador para o
medo em si, considerado com um estado presente e insuportável em sua mente, e
quando o homem considera o medo como a cruz que ele deve carregar
(inapelavelmente) como um estado em sua mente. Podemos, portanto, formular a
regra geral: Em todas as situações mentais que nos favoreçam, encoraje o
paciente a se despir da autoconsciência e se concentrar puramente no objeto em
si; mas em todas as atividades favoráveis ao Inimigo, conduza sua mente de
volta a ela mesma. Façamos com que um insulto ou um corpo de mulher fixe sua
atenção no exterior a tal ponto que ele não possa refletir "Estou neste
momento entrando em um estado de alma chamado Raiva - ou em um estado de alma
chamado Luxuria." Ao contrario, faça com que as reflexões: "Estou
agora acrescentando mais devoção ou caridade aos meus sentimentos", a fim
de fixar sua atenção em si mesmo de tal forma que nunca mais possa olhar alem
de si mesmo para ver o Inimigo ou ao seu próximo.
A respeito das
atitudes gerais do paciente com relação à guerra, você não pode confiar excessivamente naqueles
sentimentos de ódio que os humanos tanto gostam de discutir nos periódicos,
sejam eles Cristãos ou não-Cristãos. Em sua angustia o paciente pode -
reconheço - ser incentivado à vingança pessoal através de sentimentos
revanchistas contra, por exemplo, os lideres alemães, e isso é coisa muito boa
até onde puder ser levada. Mas usualmente, este tipo de ódio é melodramático e
fantasioso, dirigido contra vitimas imaginárias. Ele jamais encontra estas
pessoas na vida real - são todas figuras pré-moldadas que ele absorve das
noticias nos jornais. Os resultados deste ódio fantasioso são freqüentemente muito
decepcionantes, e de todos os humanos os ingleses são os mais deploravelmente
"fogos de palha" neste aspecto. Eles são deste tipo miserável de
criaturas que proclamam aos gritos a tortura como a melhor opção para seus
inimigos e oferecem chá e cigarros para o primeiro piloto alemão ferido
que seja capturado debaixo de suas portas.
Seja o que for
que você fizer,
sempre sobra alguma benevolência e alguma malícia na alma do seu paciente. A
grande jogada e dirigir a malícia para seus vizinhos mais próximos
(do tipo que ele veja todo dia) e dirigir sua benevolência para um círculo
distante e para pessoas que ele sequer conheça. Desta forma, a malícia acaba
se tornando real, e a benevolência, em ultima análise, totalmente
imaginária. Não é bom que você inflame o seu ódio pelos alemães se ao mesmo
tempo está crescendo um pernicioso hábito de caridade entre ele e sua mãe, seu
empregador ou o homem que ele encontra no trem.
Imagine seu homem
como uma serie de círculos
concêntricos na qual sua vontade seja o centro, vindo após seu intelecto e
finalmente, sua fantasia. Dificilmente você terá a esperança de conseguir
excluir de todos os círculos tudo que tenha o aroma do Inimigo: mas você terá
sucesso movendo todas as virtudes para o círculo da fantasia, ficando os defeitos
e vícios que desejamos transferidos para a Vontade. Somente quando estão
encravadas na Vontade, e se manifestam em atitudes e hábitos, as virtudes nos
são realmente fatais. (Não estou, naturalmente, me referindo ao que o paciente
chama erradamente de sua Vontade - esta névoa de consciência e exercícios de
resolução e gestos agressivos, mas o real centro da personalidade, que o
Inimigo chama de CORAÇÃO!).
Toda a sorte de
virtudes pintadas na fantasia ou simplesmente aprovadas pelo intelecto, ou mesmo
até certo ponto amadas e
admiradas, não arrancariam nosso homem dos antros de Nosso Pai lá de Baixo; ao
contrário, elas até fazem as vitimas mais engraçadas quando as mesmas
descem ao Inferno.
Seu afetuoso tio
SCREWTAPE
CARTA Número VII
Meu caro Wormwood:
Causa-me
realmente espécie sua
pergunta acerca de ser essencial manter o paciente na ignorância acerca
de existência. Tal questão, ao menos na presente fase da guerra, é
respondida a todos nós diretamente do Alto Comando.
Nossa política no momento é de auto-ocultação. E verdade
que nem sempre foi assim. Estamos realmente enfrentando um cruel dilema. Quando
os humanos não acreditam em nossa existência, perdemos todo o prazer resultante
do terrorismo direto e não produzimos feiticeiros, mágicos, esotéricos e
assemelhados.
Por outro lado,
quando eles acreditam em nós, não
podemos formar materialistas e ateístas, uma vez que qualquer humano que
acreditasse em nós também creria no Inimigo com facilidade.
Pelo menos por
enquanto: Tenho grandes esperanças de que ainda aprenderemos no tempo devido como manipular
o emocional e ao mesmo tempo mistificar sua ciência de tal forma que ela admita
a crença em nós seja lá por que nome for. E mesmo sabendo que será horripilante
enquanto a mente humana retiver sua crença no Inimigo, A Força Vital, a
adoração do sexo e alguns aspectos da Psicanálise podem aqui se mostrar úteis.
Se pudermos produzir nossa obra-prima, o Feiticeiro, um homem, que não se
relacionando com, mas acreditando no que ele vagamente chame de "Forças",
enquanto ao mesmo tempo nega a existência de espíritos, então o final da guerra
estará próximo. Mas nesse meio tempo, precisamos obedecer nossas ordens. Não
creio que seja muito complicado manter seu paciente em total escuridão. O fato
de que "diabos" são figuras predominantemente engraçados na
imaginação moderna irá ajudar bastante você. Se alguma débil suspeita de nossa
existência começar a se formar na mente dele, sugira a ele uma figura usando
malha vermelha e rabo pontudo e convença-o de que já que ele simplesmente não
pode acreditar naquilo, (este é um antigo método tirado de um livro para
confundi-los) também não poderá acreditar em você. Não me esqueci de minha
promessa de considerar qual seria o caminho ideal para conduzir nosso paciente
desde um patriota extremista até um radical pacifista. Todos os excessos, com
exceção da extrema devoção ao Inimigo (a qual é tecnicamente impossível, visto
os humanos estarem sempre em falta nessa área) devem ser encorajados. Não
sempre, é claro, mas nesta ocasião específica. Algumas fases são indiferentes e
complacentes, e então é nosso trabalho acalmá-los para que durmam de uma vez
bem depressa. Outras fases, das quais a presente é uma, existe uma tendência
desequilibrada ao partidarismo e é portanto nossa tarefa incendiá-lo mais
ainda. Qualquer círculo fechado ou fronteira aliada a algum interesse que os
homens não gostem ou ignorem tende a desenvolver dentro dos participantes uma espécie
de estufa mútua de admiração, e acoplado a esta, certo desprezo pelo resto
do mundo lá fora, o que é um ótimo negócio para você manipular o orgulho e o
ódio sem barreiras, porque existe a "Causa" e é ela a patrocinadora
de tais sentimentos e ações na medida que a mente se torna impessoal. Mesmo
quando o pequeno grupo existir originalmente para propósitos do próprio
Inimigo, este princípio ainda funcionará. Nosso desejo é que a Igreja permaneça
pequena, não só porque poucos homens venham a conhecer o Inimigo, mas também
porque, aqueles que podem adquirir a preocupação intensa com a defesa de seus
direitos por fazerem parte de uma sociedade secreta ou uma facção. A
Igreja em si é claro, é defendida pesadamente pelas hostes do Inimigo e,
portanto ainda não tivemos nada muito bem sucedido no sentido de darmos a ela
as características de uma seita; mas facções subordinadas a ela tem sido
freqüentemente produzidas com admiráveis resultados, desde o partido de Paulo e
Apoio em Corinto até o Alto e o Baixo Clero na Igreja da Inglaterra. Se seu
paciente puder ser induzido a se tornar um obcecado pela conscientização, ele automaticamente encontrará em si mesmo uma das pequenas, sonoras,
organizadas e impopulares sociedades e os aspectos desta, para alguém novo no
Cristianismo, quase sempre serão muito bons. Mas observe que é QUASE SEMPRE. Ele
tem abrigado sérias dúvidas acerca da legalidade de lutar em uma guerra
justa antes que a atual tivesse começado? E um homem dotado de grande coragem
física e, portanto não terá problemas com medos do subconsciente acerca dos
reais motivos de seu pacifismo? Poderia ele, quando bem próximo da honestidade
absoluta (nenhum humano está sempre nesse estado) se sentir plenamente
convencido de que ele é totalmente movido pelo desejo de obedecer ao Inimigo?
Se ele é este tipo de homem, seu pacifismo provavelmente não será grande coisa
e o Inimigo cuidará de protegê-lo das conseqüências convencionais de pertencer
a uma seita. Seu melhor plano neste caso, seria tentá-lo com uma súbita e
confusa crise emocional, da qual ele emergisse como um ferrenho convertido ao
patriotismo. Este tipo de coisas sempre pode ser controlado. Mas se ele é o
homem que eu penso que é, tente o Pacifismo.
Não importando muito qual ele adote, sua tarefa
sempre há de ser a mesma. Deixe-o começar a lidar com o Patriotismo ou o
Pacifismo como parte de sua vida espiritual. Então, deixe-o, sob a influência
do espírito de partidarismo, se convencer que ele está na parte mais
importante. E finalmente, silenciosa e gradualmente, conduza-o ao palco onde a
vida espiritual seja apenas uma parte da "Causa", na qual o
Cristianismo seja avaliado principalmente por seus excelentes argumentos em
favor do esforço de guerra britânico ou do Pacifismo. A atitude contra a
qual você tem que se resguardar é em quais assuntos temporais são tratados
primariamente como caminhos para a obediência. Uma vez que você o persuada a
considerar o Mundo uma finalidade e a fé um meio, você quase terá vencido o seu
homem, já que é muito difícil perceber a pequena diferença entre uma finalidade
mundana e o que ele está perseguindo.
Uma vez
providenciado para que encontros, panfletos, políticas, movimentos, causas e cruzadas comecem a ter muito
mais importância para ele do que as orações, ordenanças e a caridade, ele é
nosso e quanto mais religioso (nestes termos) ele for, mais seguramente nosso
ele se tornará. Eu poderia mostrar a você uma gaiola cheia desse tipo de almas
aqui embaixo.
Seu afetuoso tio
SCREWTAPE
CARTA Número VIII
Meu caro
Wormwood:
Com que então você "tem grandes esperanças de que a
fase religiosa do paciente esteja morrendo"... não é mesmo ? Eu sempre
achei que o Colégio de Treinamento havia desabado em ruínas depois que o
Gosmento assumiu seu comando, e agora eu passo a ter certeza mesmo! Será
possível que nunca ninguém explicou a você acerca da Lei da Ondulação?
Os humanos são anfíbios - metade espíritos e metade animais.
(A determinação do Inimigo para produzir estes híbridos tão revoltantes foi uma
das coisas que determinou Nosso Pai a retirar o apoio que antes prestava a
Ele). Como espíritos, eles fazem parte da existência eterna, mas
como animais eles vivem presos ao tempo. Isso implica em que seus espíritos
podem ser direcionados a objetos eternos e seus corpos, paixões e imaginações
estão em contínua mudança, já que estar ligado ao tempo significa estar em
mutação.
A sua característica mais próxima da constância que caracteriza
tudo que é eterno é portanto a ondulação - o retorno repetido a um nível no
qual ele havia caído anteriormente, ou melhor, uma série de picos e valas. Se
você tivesse observado melhor seu paciente, teria observado esta ondulação em
todos os departamentos de sua vida - seu interesse pelo trabalho, sua afeição
pelos amigos, seus apetites físicos, tudo subindo e descendo. Portanto, você
contemplará, nos períodos emocionais que ele vivência na terra, riqueza e
alegria com períodos alternados de tristeza, depressão e pobreza.
Desta forma, a
sequidão e desânimo que seu paciente
está atravessando agora estão longe de ser -como você imaginava - o fruto
vitorioso de seu trabalho; ele está apenas atravessando um fenômeno natural que
não nos trará nenhum benefício por si mesmo, a menos que você faça bom uso
dele.
Uma maneira fácil de decidir qual o melhor uso desta situação
é analisar o que o Inimigo está fazendo a respeito, e então fazer exatamente o
oposto. Se entendêssemos toda a sistemática dEle, bastaria lutarmos sempre
contra todas as suas ações e iniciativas; infelizmente, não é tão simples
assim. Muitas vezes temos a impressão que Ele está fazendo coisas ruins com as
pessoas, num primeiro momento, só para descobrirmos em seguida que o que nos
parecia mau era outra sofisma dEle para beneficiar os vermes humanos. Como
tenho explicado amiúde, Ele não tem nenhum escrúpulo com este tipo de coisa, a
ponto de ficarmos totalmente confusos em algumas ocasiões - mais até do que os
humanos alvos de suas ações.
Agora, uma coisa
que pode surpreender você é o fato
de que o Inimigo, em sua luta por conquistar almas, Ele as mantém às vezes por
mais tempo nos vales desagradáveis que nos picos gloriosos, a despeito do
desagrado que isso causa nos seres humanos. E alguns de Seus favoritos
especiais são exatamente os que passam por aflições mais profundas e
prolongadas.
A razão é essa: Para nós, um humano é primariamente
comida; nosso desejo pela absorção de suas almas para dentro de nós, o aumento
de nosso próprio alcance pessoal às custas deles.
Mas a obediência que o Inimigo requer deles é uma coisa
totalmente diferente. Temos que encarar a realidade de que tudo que se fala a
respeito de Seu amor pelos homens e sua obra de proporcionar perfeita liberdade
não é (como muitos poderiam acreditar sorridentes) mera propaganda, mas uma
aterradora realidade. Ele realmente quer encher o Universo com um monte destas
pequenas réplicas dEle mesmo, criaturinhas cujas vidas em uma escala
miniaturizada seriam qualitativamente como Ele próprio, não
porque Ele as tivesse absorvido mas porque suas vontades livres eram
semelhantes à dEle. Nós queremos criar gado que finalmente nos sirva de
alimento; Ele quer servos que mais tarde converterá em filhos. Nós queremos
sugá-los, Ele quer premiá-los; Nos somos vazios e queremos nos encher através
deles, Ele é pleno e assim transborda.
Nossa guerra visa
um mundo no qual Nosso Pai Lá de Baixo
tenha todos os demais seres encerrados nele mesmo; O Inimigo deseja um mundo
cheio de seres unidos a Ele, mas ainda distintos e pessoais.
E é aí mesmo que a coisa aperta. Você tem
freqüentemente se maravilhado porque o Inimigo não faz maior uso de Seu poder
para se apresentar sensivelmente às almas humanas em qualquer grau que lhe
desse vontade, e a qualquer momento. Mas agora você entende que o Irresistível
e o Indisputável são as duas armas que a própria natureza do Inimigo o proíbe
de usar. Apenas sobrepujar uma vontade humana (com sua própria Presença num
grau que parecesse inquestionável ao homem) não valeria coisa alguma para Ele.
Ele não violenta ninguém. Ele pode apenas pedir,
solicitar. Por causa de Sua ignóbil idéia acerca dos homens, algo como
você comer um bolo e ainda ter o bolo inteiro com você, as criaturas terminam
sendo uma coisa só com Ele, mas ainda são elas mesmas. Apenas as destruir ou
absorver não só não Lhe serviria, como sequer faria algum sentido para Ele.
Ele se dá ao trabalho de voltar com eles ao começo, e os
prepara com manifestações de sua Presença, a estes que apesar de suas fraquezas
o vêem como Grande, docemente emotivo, e capaz de vencer facilmente qualquer
tentação. Mas ele nunca permite que este estado de calma e tranqüilidade dure
muito tempo. Mais cedo ou mais tarde, Ele sai de perto deles, se não de fato,
pelo menos de suas experiências conscientes, e de seus apoios e incentivos
visíveis.
Ele deixa as
criaturas em pé por suas
próprias pernas - para carregá-los no colo de suas missões solitárias onde já
não houvesse mais nenhum prazer ou tempero. Isto acontece durante certos
períodos, muito mais que os períodos de pico, e proporciona segundo o que Ele
acredita, crescimento na direção de que as criaturas se tornem as pessoas que
Ele deseja.
Portanto, as orações que sobem diante dEle durante os vales de
amargura e sofrimento são as que mais o agradam, normalmente. Nós podemos
arrastar nossos pacientes ao longo de tentações contínuas, porque os queremos
apenas para estar em nossas mesas, além de suas vontades, sem dúvida a melhor
parte deles.
Já Ele, não pode tentar suas virtudes, como usamos
fazer. Ele quer que eles aprendam a caminhar e então escolham segurar em
Sua mão; e esse conduzir pela mão é fortemente aplicado nas situações em que
eles estão lidando com seus tropeços. Mas não se deixe enganar, Wormwood! Nossa
causa nunca estará mais ameaçada do que nas vezes que um ser humano, mesmo não
desejando pessoalmente alguma coisa, estiver fazendo a vontade do Inimigo,
ainda mais quando ele estiver observando o universo em seu redor, sem conseguir
ver o menor traço do Inimigo se perguntando porque Ele o teria abandonado
assim, e mesmo assim OBEDECENDO.
Mas claro que
estas situações de
solidão também nos beneficiam. Na próxima semana, eu lhe darei algumas dicas acerca
de como explorá-las.
Seu afetuoso tio
SCREWTAPE
CARTA Número IX
Meu caro
Wormwood:
Espero que minha última carta tenha convencido você de que o
deserto de tédio ou "sequidão" pelo qual o seu paciente está passando
atualmente não fará por si mesmo a alma dele cair em suas mãos, a não ser que
seja convenientemente explorada. Passo a descrever as maneiras de aplicar a
dita exploração.
Em primeiro
lugar, eu tenho sempre reparado que os períodos "de baixa" das ondulações humanas fornecem
excelentes oportunidades para todas as tentações sensuais, particularmente as
ligadas ao sexo. Isto poderia soar estranho para você, uma vez que é claro que
há energia física e portanto potenciais de apetite sexual nos períodos
"de pico" dos homens; mas você precisa se lembrar também que nessas
ocasiões em que eles estão sorridentes, dançando abraçados, rindo alto e
cantando, enquanto tomam champagne são também os momentos em que a resistência
mental e espiritual a todas as suas sugestões pecaminosas também estarão em alta.
A saúde e alegria que você está tentando usar para produzir luxúria e
licenciosidade pode ser facilmente canalizada em coisas como trabalho,
diversão, ou alegres pensamentos desprovidos de malícia.
O ataque tem
muito maiores chances de ser bem sucedido quando por alguma razão o mundo interior seu homem estiver
desmazelado, frio e vazio.
E é também digno de nota que o canal de sexualidade
se torna subitamente diferente em qualidade, diria mesmo que totalmente
diferente das ocasiões "de pico", durante os estranhos fenômenos água
com açúcar que os humanos chamam de "se apaixonar". Nessa ocasião
será mais fácil desenhar dentro dele perversões, e você notará que as mesmas
perversões não são contaminadas pela generosidade e compromisso espiritual os
quais freqüentemente causam uma sexualidade humana tão decepcionante. Acontece
assim com outros desejos da carne. Você consegue mais facilmente transformar
sua vítima num alcoólatra inveterado quando lhe sugere usar o álcool como uma
anestesia contra alguma dor ou tristeza que o esteja acometendo. Não espere
grandes resultados quando tentar levá-lo ao vício da bebida exatamente quando
ele está feliz celebrando aniversários, vitórias do seu time de futebol ou
promoções na carreira profissional. Nunca se esqueça de que quando estamos
lidando com qualquer forma de prazer sadio e qualquer forma de satisfação
normal, de certa forma estamos pisando no terreno do Inimigo. Eu sei que nós
temos alcançado muitas almas através dos prazeres; mas não nos
esqueçamos que todo prazer é invenção dEle! Ele criou todos os prazeres;
toda nossa pesquisa através dos séculos não foi capaz de criar uma única
forma de prazer. Tudo que podemos fazer é encorajar os seres humanos a
tomar os prazeres que o Inimigo criou de formas ou intensidades que Ele mesmo
tenha proibido.
Toda vez que
tentamos trabalhar usando condições naturais de qualquer prazer que seja no mínimo
natural, o mesmo começa a exalar aquele cheiro abominável do seu Criador, como
nos lembrando que pertence a Ele. Um aumento considerável no desejo pela
obtenção cada vez menor do prazer relacionado é a fórmula! Isto dá mais
resultado, e é portanto o melhor estilo a adotarmos. Conseguir a alma do homem
dando a ele NADA em troca - é o que realmente aquece o coração de Nosso Pai Lá
de Baixo. E os caminhos são o tempo para o começo do processo.
Mas existe uma
forma ainda melhor de explorar os "desertos". Quero dizer, através dos próprios pensamentos do paciente a
respeito do deserto. Como sempre, nosso primeiro passo é afastar o conhecimento
de sua mente. Não o deixe sequer suspeitar da existência da Lei da Ondulação.
Deixe-o assumir que os
primeiros ardores de sua conversão deveriam permanecer indefinidamente, e mostre-lhe que
deveriam, mas passaram, e portanto a atual situação de sequidão e indiferença é
uma condição igualmente permanente. Uma vez que tenha colocado essa mentira na
mente dele, você pode agir de várias maneiras.
Tudo depende do
tanto que seu homem seja desanimado a ponto de que o tentemos até o desespero ou do tipo de pensamentos desejosos
que o conduzamos a ter achando que tudo está bem ou "sob controle". O
primeiro tipo é muito raro entre os seres humanos Se seu paciente pertencer a
ele, tudo será muito fácil. Você tem apenas que mantê-lo fora do caminho dos
cristãos experientes (tarefa fácil hoje em dia, devido ao descaso pelo qual
passa a Igreja) e dirigir sua atenção para as passagens apropriadas nas
Escrituras, e então mergulhá-lo no trabalho desesperado de recuperar o
"primeiro amor" por seus próprios esforços, e teremos ganho a
partida.
Se ele é do tipo mais esperançoso, seu trabalho é
mantê-lo na baixa temperatura espiritual que se encontra e gradualmente mudar a
visão dele de forma a acreditar que ele não está tão mal assim. Em uma semana
ou duas você o verá começar a duvidar se seus primeiros dias no Cristianismo
não foram exagerados ou excessivos. Fale a ele acerca da "moderação
em todas as coisas". Se você conseguir convencê-lo de que a
espiritualidade é muito boa mas só até certo ponto, pode começar a sentir o gostinho
de sua alma. Uma espiritualidade morna é tão boa para nós quanto
espiritualidade nenhuma, e bem mais divertida, além disso.
Uma outra
possibilidade é o ataque
direto à sua fé. Quando você conseguir convencê-lo de que o deserto é
permanente, você não poderia persuadi-lo também que a sua atual fase espiritual
está morrendo como todas as demais fases de sua vida?
Claro que não há um caminho seguro para mover sua razão a
partir da proposição "Estou perdendo o interesse nisso aqui" para a
proposição "Isto é falso" Mas como eu lhe disse antes, é o jargão e
não a razão que nós temos que utilizar. A simples expressão
"Fase" será empregada de forma falaciosa. Concordo que a criatura
passou várias vezes por ela antes - todos eles passaram - mas eles não costumam
raciocinar sobre o fato de terem vencido muitas, não porque tenham o criticismo
racional falho, mas apenas porque elas ficaram no passado e, portanto já não se
lembram muito bem delas. Mantenha-o portanto alimentado de idéias bastante
confusas acerca de Progresso e Desenvolvimento bem como dentro do Ponto
de Vista Histórico, e dê a ele montes de biografias modernas para ler. As pessoas
que fazem parte delas estão sempre emergindo de fases antigas, não
estão?
Pegou a idéia? Mantenha sua mente fora do plano das
antíteses entre Verdadeiro e Falso. Confunda na cabeça dele expressões como
"Isso foi uma fase", ou "Já passei por tudo isso" e não se
esqueça daquela palavra abençoada: "Adolescente".
Seu afetuoso tio
SCREWTAPE
CARTA Número X
Meu caro Wormwood:
Estou deliciado
em ouvir do Tropeço que seu
paciente tem feito algumas novas amizades bem desejáveis, e que você já
entendeu como usá-las de maneira bem promissora. Eu enfocaria que o casal de
meia-idade que tem freqüentado seu escritório é exatamente o tipo de gente que
queremos que ele conheça - ricos, espertos, superficialmente intelectuais, e
brilhantemente incrédulos sobre tudo neste mundo. Chamo sua atenção para o
aspecto de que eles são vagamente pacifistas, não por assuntos morais, mas por
um hábito já arraigado de depreciar qualquer coisa que diga respeito a pessoas
comuns do povão, além de uma apreciação pouco pensante do que esteja na moda e
do comunismo literário. Isso é simplesmente excelente! E aparentemente, você
tem feito bom uso de toda a futilidade social, sexual e intelectual deles dois.
Mas conte-me mais! Ele está profundamente ligado a esse casal? Não estou me
referindo a uma ligação da boca pra fora. Há um sutil jogo de olhares, sorrisos
e tons de voz que demonstra que ele faz parte do grupo de pessoas com as quais
está conversando (ou seja, conotam cumplicidade com o referido grupo). Este é o
tipo de envolvimento que você deve encorajar, partindo da premissa que os seres
humanos não se realizam totalmente em si mesmos, e com o tempo você pode
aprender a usar essa dificuldade deles. Sem dúvida ainda é muito cedo para seu
paciente perceber que suas posições de fé estão em oposição direta a todas as
conversas que ele tem com os novos amigos. Não creio que haja grandes problemas
em você persuadi-lo a adiar ao máximo qualquer conhecimento explícito da
situação, e isto, com a ajuda da vergonha, do orgulho e da futilidade será uma
tarefa simples de se executar.
Quanto mais você conseguir que ele adie uma conversa aberta com
a dupla, onde ele se posicione claramente como cristão, mais tempo você estará
conseguindo que ele viva na falsidade. Ele silenciará quando deveria falar, e
rirá quando deveria estar em silêncio. Ele assumirá primeiramente apenas pelas
maneiras, e em seguida pelas palavras, toda a sorte de atitudes cínicas e
incrédulas que não são realmente suas. Mas se você manipular bem a situação,
pode até conseguir com que as atitudes terminem sendo dele de fato. Todos os
mortais tendem a se tornar as coisas que eles pretendiam ser. Isto é elementar.
O único problema real é como se preparar para o contra-ataque do Inimigo.
A primeira coisa é você retardar tanto quanto puder o momento no
qual ele perceba que esta nova forma de prazer não passa de uma tentação nossa.
Uma vez que os servos do Inimigo tem pregado bastante sobre "O
Mundo", como uma das grandes tentações para dois mil anos, isto pode ser
bastante difícil de realizar. Mas felizmente eles ultimamente têm tocado pouco
nesse assunto nas últimas décadas. Nos escritos cristãos modernos ainda que eu
tenha visto muito (na verdade, mais do que eu gostaria) sobre Mamom, vi muito
pouco acerca das Futilidades Mundanas, a Escolha de Amigos e o Valor do
Tempo. Tudo isso, provavelmente, seu paciente irá classificar como
"Puritanismo" - e posso salientar de passagem que o valor que nós
temos dado a esta palavra se constitui em um dos nossos triunfos realmente
sólidos nos últimos cem anos?
Pelo nosso
resgate anual de milhares de seres humanos da temperança, castidade e sobretudo da vida.
Mais cedo ou mais
tarde, de qualquer modo, a real natureza de seus amigos tem que se tornar clara
para ele, e então suas
táticas tem que depender da inteligência do paciente. Se ele for um idiota
completo, deixe-o assumir o caráter dos novos amigos somente enquanto eles
estiverem ausentes. Suas presenças podem ser manipuladas de maneira a varrer do
paciente todo o criticismo. Se isto funcionar, ele pode ser induzido a viver, como temos conhecimento que
muitos humanos vivem, por longos períodos de tempo, entre duas vidas paralelas; ele não só terá a
aparência de ser, como também será um homem diferente, dependendo do círculo de
amizades em que estiver numa determinada noite.
Se isto falhar, há um modo mais sutil e até bem mais divertido.
Ele pode ser conduzido a acreditar que um prazer positivo na sua percepção de
que os dois lados de sua vida são inconsistentes. Isto é facilmente explorável
pela futilidade do paciente. Ele pode ser ensinado a apreciar uma oração de
joelhos ao lado do quitandeiro no domingo, apenas porque ele se lembra que o
quitandeiro não entende certamente o mundo de gente zombeteira no qual ele
habita nas noites de Sábado; e ao contrário, podemos ensiná-lo a apreciar as
indecências e blasfêmias que naturalmente brotam de um café com estes admiráveis
amigos, em geral porque ele está atento a respeito de um mundo profundo e
espiritual o qual ele simplesmente não consegue enxergar, mas não acerca do
seu dia a dia nocivo e dominado por nós.
Capte a idéia - seus amigos mundanos o tocam de um lado, e o
quitandeiro do outro, e ele está completo, balanceado, o complexo homem que
consegue discernir tudo ao seu redor. Então, enquanto está sendo
permanentemente traiçoeiro e falso a pelos menos dois grupos de pessoas, ele
sentirá, ao invés de vergonha por ser hipócrita, rios contínuos de
auto-satisfação. Finalmente, se todo o resto falhar, você pode persuadi-lo,
como um desafio à consciência, a continuar o novo relacionamento, em algum
caminho incerto e sem compromisso, considerando estas pessoas são "boas"
pelo simples fato de estar tomando seus coquetéis e rindo de suas piadas, e que
interromper tal relacionamento seria "pedante",
"intolerante" e (é claro) Puritano.
Enquanto isso,
você cuidará de tomar as
precauções óbvias para se assegurar que este novo desenvolvimento o induz a
gastar mais do que ele pode, por suas condições salariais e a negligenciar seu
trabalho e sua mãe. Os ciúmes dela, suas preocupações exageradas e o
comportamento do paciente cada vez mais evasivo e rude, serão inestimáveis no
sentido de agravar a tensão doméstica.
Seu afetuoso tio
SCREWTAPE
CARTA Número XI
Meu caro
Wormwood:
Tudo está obviamente indo muito bem! Estou
particularmente contente por saber que os dois novos amigos dele o enturmaram
com o restante da "quadrilha". Todos dentre eles, pelo que sei da
imprensa oficial, são pessoas inteiramente confiáveis; pessoas estáveis,
escarnecedores de primeira e mundanos até onde possam ser ter cometido nenhum
crime espetacular. São pessoas que estão silenciosa progressiva e confortavelmente
a caminho da casa de Nosso Pai.
Você fala deles como sendo grandes gracejadores...
Eu confio que isso não queira dizer nada, digo, esta impressão de que o riso
esteja sempre a nosso favor. E este ponto merece alguma atenção.
Eu divido as
motivações para o riso humano em
Exprimir Alegria, Se Divertir, Achar Graça e Zombaria ou Irreverência. Você
verá o primeiro tipo entre amigos e amantes reunidos na véspera de um feriado.
Entre adultos sempre existe pretexto no rumo de piadas, mas a facilidade com que
os menores gracejos produzem risadas mostra que o gracejo em si não é a causa
principal do riso. O que é a causa principal é exatamente o que nós não sabemos
ainda. Alguma coisa do tipo é vista durante execuções da detestável arte humana
conhecida por "Música", e algo parecido com isso ocorre nos Céus -
uma aceleração sem motivo aparente no ritmo das atividades celestiais
totalmente incompreensível por nós. O riso por causa de razões assim não é bom
para nós, e por tanto deve ser sempre desencorajado. Além do mais, trata-se de
um fenômeno nojento e um insulto direto ao realismo, dignidade e austeridade do
Inferno.
Achar graça é algo estreitamente relacionado à alegria -
um tipo de frivolidade emocional que brota do instinto de brincar. Isso é de
quase nenhuma utilidade para você. Pode ser usada, de acordo, para divertir
humanos a partir de alguma coisa contrária ao que o Inimigo gostaria que eles
se divertissem: mas a diversão em si mesma já traz tendências indesejáveis; ela
promove caridade, coragem, contentamento e muitos outros males horríveis.
O gracejo
propriamente dito, o qual é gerado
normalmente pela súbita percepção da incongruência, é um campo muito mais
promissor. Não estou imaginando primariamente o humor obsceno ou indecente, o
qual tem sido largamente usado por tentadores de segunda-categoria e
freqüentemente traz decepções no tocante aos resultados. Na verdade, os seres
humanos são maravilhosamente divididos em dois grandes times, no que diz
respeito a esse assunto: Há alguns para quem nenhuma paixão é tão importante
quanto a lascívia e para os tais, uma história indecente perderá toda a
lascívia no exato momento que se tornar engraçada. E existem outros cuja
sensualidade e gracejo são disparados ao mesmo tempo pelas mesmas coisas e
situações. Os do primeiro tipo fazem piadas a respeito do sexo porque
isso gera polêmicas e assuntos desencontrados. Já os do segundo time cultivam
diversos assuntos com a finalidade de terminar sempre os mesmos assuntos
falando de sexo. Se seu homem for da primeira categoria, o humor picante não
vai ajudar você em nada - nunca me esquecerei das horas horrendamente
entediantes que desperdicei com um de meus primeiros pacientes, antes que
tivesse aprendido esta regra. Descubra a qual grupo seu paciente pertence e
cuide para que ele não se aperceba nem de longe do fato. A única finalidade
útil realmente das piadas e do humor em geral está numa direção diferente, e é
particularmente promissora entre os ingleses, os quais levam o "senso de
humor" tão a sério, que uma deficiência nesta área lhes causa vergonha
profunda. O Humor é para eles o objeto de consolo para tudo, e portanto é
exatamente a área onde se permitem fazer quaisquer coisas que tenham vontade no
momento. Alguns acreditam piamente que sem humor, a vida não tem a menor graça, e portanto o mesmo humor se torna um
real ídolo para eles. Ou seja, em nome de "terem senso de humor", se
permitem fazer as coisas mais desavergonhadas possíveis. Se um sujeito sempre
deixa os amigos pagarem sua conta no restaurante, rapidamente seria qualificado
como "mão de vaca". Mas se nas ocasiões que isso acontecer ele
fizer piadas, gozando os amigos explorados e chamando a ele mesmo de avarento,
um fenômeno estranho acontece: Todos passam a vê-lo não como sovina, mas como
um sujeito engraçado. A simples covardia é profundamente vergonhosa. Mas
se a adornarmos com um monte de gracejos e comentários exagerados (tipo
brincarmos com um soldado que fugiu e abandonou seus companheiros numa hora
difícil, dizendo que ele tem medo das baratas do quarto, e o mesmo fazendo
caretas quando comentassem) a covardia se tornará como num passe de mágica
apenas uma coisa engraçada. A crueldade é terrível para os humanos, e
inaceitável, a menos que o homem cruel possa ser representado de forma cômica e
espalhafatosa. Milhares de anedotas imorais, ou mesmo blasfemas, não
destruiriam tanto a alma de um indivíduo quanto a descoberta de que o mesmo
possa praticar e até proclamar atos reprováveis, desde que os cerque de graça e
comicidade. As pessoas podem mesmo admirar o pecador, olvidando as
faltas cometidas em nome de dar risada delas. Qualquer excesso que ela
percebesse estar cometendo seria imediatamente abafada debaixo da idéia que
isso seria "puritanismo" ou simplesmente falta de senso de humor.
Mas a melhor
dentre todas as causas mencionadas é certamente a leviandade. Para começar, ela é bastante
econômica. Sempre que um ser humano mais inteligente consegue fazer alguma
piada enfocando uma virtude pode contaminar seus companheiros no sentido de que
as virtudes sejam engraçadas. Com algum tempo (e com seu trabalho dedicado) as
mesmas pessoas criarão ao redor de suas mentes uma verdadeira armadura contra o
Inimigo, no tocante a todas aquelas virtudes que eles andaram gracejando. A leviandade
é ótima, em todos os aspectos. Fica a milhares de quilômetros da verdadeira
alegria, e ainda tem a vantagem de não despertar nenhum afeto entre as pessoas
do grupo que a estão exercitando.
Seu afetuoso tio
SCREWTAPE
CARTA Número XII
Meu caro
Wormwood:
Obviamente, você tem feito excelente progresso. Meu único receio
se baseia na possibilidade de você empurrar o paciente para a perdição tão
rapidamente que ele despertasse para o discernimento de sua real posição. Para
eu e você, que vemos tal posição como realmente é, jamais deve ser esquecido o
quanto isso tudo deve parecer para ele. Sabemos que conseguimos introduzir uma
grande mudança de direção no curso da vida dele, a qual já o está tirando da
órbita em redor do Inimigo; mas ele precisa ser levado a acreditar que todas as
escolhas recentes que tem feito são triviais e revogáveis. Ele não pode
ser conduzido a suspeitar que está agora, ainda que lentamente, sendo dirigido
diretamente do Sol para uma linha na qual o estamos carregando para o frio e
escuridão do vazio absoluto.
Por esta razão, estou quase alegre ao ouvir que ele ainda é
um freqüentador da igreja e ainda participa da Ceia do Senhor. Conheço bem os
perigos que existem nisso, mas qualquer coisa é melhor do que se ele fizesse
uma comparação séria a respeito do que tem feito nos últimos dias e do que
fazia nos primeiros meses de sua vida cristã. Enquanto ele ainda mantiver
externamente os hábitos de um cristão, ele pode ser manipulado para imaginar a
si mesmo como alguém que apenas adotou alguns novos amigos e diversões, embora
seu estado espiritual continue o mesmo de seis semanas atrás. E enquanto ele
pensar assim, não temos que lutar com o arrependimento explícito de qualquer
posição, totalmente reconhecida como pecaminosa, mas apenas lidarmos com um
sentimento vago, ainda que receoso, de que ele não tem se comportado lá muito
bem ultimamente.
Esta referida
inquietação do
paciente precisa ser manipulada com muito cuidado. Se tornar-se muito forte,
pode acordar o paciente e destruir o jogo inteiro. Por outro lado, se você o
esconder totalmente - coisa que provavelmente o Inimigo não permitirá que você
faça - deixaremos de contar com um elemento extremamente útil na situação como
um todo: se tal sentimento é levado a permanecer, mas nunca se torna irresistível
e desabrocha como arrependimento genuíno, isso termina levando seu homem a uma
tendência inevitável - o aumento gradativo da relutância em pensar no Inimigo.
Quase todos os seres humanos tem um pouco desta relutância; mas quando pensar
na Pessoa dEle inclui o confronto e a intensificação de uma nuvem totalmente
vaga de culpabilidade semi-consciente, esta relutância cresce dez vezes mais.
Os homens passam a odiar qualquer idéia que sugira Ele, da mesma forma que um
homem com dificuldades financeiras detestaria a visão de um extrato bancário.
Neste estado, seu paciente irá não só omitir, como começará a abominar seus
deveres espirituais. Ele irá pensar a respeito deles o mínimo que puder,
mantendo a decência, e se esquecer dos mesmos o mais rápido que puder, assim
que os tiver concluído. Poucas semanas atrás, você teve que tentá-lo para a
não-objetividade e desatenção nas suas orações; já agora você o encontrará de
braços abertos e quase suplicando a você que o distraia de suas obrigações e
lhe entorpeça o coração. Ele mesmo irá querer que suas orações sejam bem
irreais, pois não há nada que ele tema mais que o contato efetivo com o
Inimigo. Ele terá como alvo deixar as minhocas na sua cabeça dormindo.
Conforme esta
condição for se tornando mais
estabelecida, você irá sendo gradualmente liberado da insuportável tarefa de
estar providenciando prazeres para as tentações. Uma vez que a inquietação e a
relutância em encará-la afastam dele mais e mais a felicidade real, e visto
como a monotonia da rotina habitual faz com que os prazeres provenientes da
vaidade, excitação e irreverência se tornem cada vez menos aprazíveis e cada
vez mais difíceis de se abandonar (pois é exatamente isto que o hábito rotineiro faz com qualquer prazer) você observará que
quase nada ou mesmo nada será suficiente para atrair sua atenção errante. Você
não precisará mais de um bom livro, do qual ele realmente goste, para mantê-lo
longe de suas orações ou de seu trabalho ou de seu sono; uma coluna de
conselhos do jornal de ontem será suficiente. Você pode agora levá-lo a
desperdiçar seu tempo não somente em conversas que ele aprecia com pessoas que
ele goste mas em conversas com quem ele não ligue a mínima e assuntos que o
aborreçam. Você pode conduzi-lo neste esquema por longos períodos. Pode mantê-lo
acordado até tarde da noite, não numa farra homérica, mas apenas observando o
fogo que se apaga na lareira de uma sala gelada. Todas as atividades sadias e
sociáveis que desejamos que ele evite podem ser objetos de inibição sem que
tenhamos que lhe dar absolutamente NADA em troca, de forma que no final ele
possa dizer, como um de meus pacientes falou quando chegou aqui. "Eu agora
vejo que gastei a maior parte da minha vida fazendo nada do que eu queria ou
gostava." Os cristãos descrevem o Inimigo como aquele sem o qual nada é
forte. E na verdade, nada é realmente muito forte. Digo, forte o suficiente
para roubar de um homem seus melhores anos, não em doces pecados mas em uma
sombria e melancólica divagação de sua mente, de forma a ele não saber o que
nem o porquê da satisfação das curiosidades tão voláteis que o homem nem mesmo
chega a discernir com exatidão, no estalar de seus dedos e bater dos
calcanhares, no assobio de melodias que ele detesta ou no longo, enevoado
labirinto de fantasias que nem mesmo contam com a sensualidade e ambição para
ter algo de prazeroso, mas uma vez que exista alguma associação casual com o
pecado, a criatura está fraca e confusa demais para se desvencilhar daquilo.
Você poderá comentar que todos estes são pecados muito pequenos; e sem dúvida
alguma, como todos os tentadores inexperientes, você está ansioso para relatar
alguma maldade espetacular. Mas você precisa se lembrar que a única coisa que
realmente interessa é a extensão da distância a que você possa levá-lo do Inimigo.
Não importa o quão desprezíveis sejam os pecados usados neste efeito
cumulativo, desde que continue aumentando a vala que conduz a vítima cada vez
mais para longe da Luz e cada vez mais para dentro do Nada. Assassinato não é
melhor que jogo de cartas se as cartas podem realizar o engano. Com efeito, a
estrada mais segura para o Inferno é a gradual - a ladeira suave, com chão
suave, sem curvas acentuadas, sem avisos de quilometragem e sem placas
indicativas de sinalização.
Seu afetuoso tio
SCREWTAPE
CARTA Número XIII
Meu caro
Wormwood:
Está me parecendo que você gastou um imenso número
de páginas para contar uma história extremamente simples. No frigir dos ovos,
você deixou o homem escapar por entre seus dedos. A situação é muito grave, e
eu realmente não vejo nenhuma razão para tentar livrar você das conseqüências
de sua ineficiência. Um rompante e renovo do que o outro lado chama de
"Graça" na escala que você me descreveu é uma derrota de primeira
grandeza! Isto tem o peso de uma segunda conversão e provavelmente a mesma terá
um nível mais profundo que a primeira.
Como você forçosamente deveria saber, a nuvem asfixiante
que evitou seu ataque ao paciente no seu caminho de volta do velho moinho é um
fenômeno já bem conhecido. E a arma mais bárbara de que faz uso o Inimigo, e
geralmente se manifesta quando Ele está pessoalmente presente com o paciente de
maneiras ainda não bem compreendidas por nós. Alguns dentre os seres humanos
estão permanentemente rodeados por aquilo, e são totalmente inacessíveis para
nós. E agora, vamos às suas mancadas. De acordo com seus próprios comentários,
você permitiu, primeiramente, que o paciente lesse um livro do qual realmente
gostava, apenas por gostar dele, e não para fazer comentários espertos sobre o
livro com os novos amigos. Em segundo lugar, você permitiu que ele fizesse uma
caminhada ao velho moinho e tomasse um chá lá - o que equivale dizer, um
passeio por uma região da qual ele realmente gosta, e estando sozinho. Em
outras palavras, você permitiu que ele usufruísse livremente de DOIS prazeres
reais. Será possível que você seja ignorante a ponto de não conhecer o perigo
nisso tudo? A grande característica nos prazeres e nos sofrimentos é que eles
são insofismavelmente reais, e, portanto, não importa quão longe eles consigam
ir, eles proporcionam ao homem algo como uma "caída de ficha" para
comprovação da realidade. Desta forma, se você vinha tentando danar seu homem
pelo método Romântico - fazê-lo uma espécie de Romeu apaixonado, submerso em
murmurações por uma infelicidade imaginária do tipo "sem Julieta, a vida
não faria sentido" - deveria tê-lo protegido a todo custo de passar por
alguma dor verdadeira; por que é evidente que apenas cinco minutos com uma dor
de dente real revelaria a ele que o sofrimento romântico não fazia sentido
algum e assim seu estratagema seria desmascarado na hora! Mas se você estava
tentando desgraçar seu paciente através do Mundo, ou seja, através da
exploração da vaidade, da jactância, da ironia e o tédio em relação aos prazeres.
Como foi possível você não perceber que experimentar um PRAZER REAL devia
ser a última coisa permissível a ele? Não entende que você deveria ter
previsto que tal experiência mataria instantaneamente (pelo contraste) toda a
coleção de jóias falsas que você trabalhosamente havia dado a ele e o ensinado
a valorizar? E que também o tipo de prazer que a leitura do livro e o
passeio ao moinho deram a ele são o maior perigo para nós? E que este mesmo
tipo de prazer arrancaria a crosta de engano que você vinha colocando na
mente dele, dando-lhe mesmo a sensação de estar de volta em casa totalmente
recuperado. O plano preliminar que você empregou para afastá-lo do Inimigo
terminou por afastá-lo de si próprio e você até que tinha feito alguns
progressos. Agora, tudo desmoronou. Entendo qual foi sua confusão... E claro
que estou ciente de que o Inimigo também quer tirar o foco dos homens de si
mesmos, mas o modo é totalmente diferente. Lembre-se sempre que o Inimigo
realmente gosta destes vermezinhos, e atribui um valor absurdo a respeito das
características individuais de cada um deles. Quando Ele diz que os homens
devem de fato renunciar a si mesmos, na verdade isso quer apenas dizer
abandonar a prioridade na satisfação do seu "eu", mas tão logo eles
conseguem fazer isso, o Inimigo lhes devolve novamente toda a essência de suas
personalidades, e ainda se vangloria (temo eu que Ele seja sincero no que diz)
que quando os homens se rendem totalmente a Ele passam a ser mais do que eram
anteriormente. A partir daí, enquanto Ele se delicia ao ver os homens sacrificando mesmo suas coisas mais
inocentes à vontade
dEle, Ele mesmo odeia quando os bípedes rastejantes mudam sua natureza ou
sacrificam suas coisas queridas por qualquer razão que não seja Ele. Quanto a
nós, sempre estaremos encorajando-os a que façam isso! Os mais profundos
sentimentos e impulsos de todos os homens são nossa matéria-prima, o ponto de
partida com o qual o Inimigo os tem dotado. Toda vez que conseguimos tirar de
algum indivíduo algum destes traços de personalidade, marcamos um gol! Mesmo
que pareçam coisas inofensivas, sempre nos é interessante substituir as
preferências, gostos e pretensões reais dos seres humanos por outros padrões,
como o mundano, os convencionalismos sociais e a moda e portanto devemos afastar
os homens dos gostos e desgostos pessoais reais. Sou radical a ponto de
estabelecer uma regra no sentido de tentar arrancar do paciente todo e qualquer
gosto pessoal que não constitua um pecado definido, mesmo se tratando de coisas
tolas como uma competição esportiva, uma coleção de selos ou beber Coca-Cola.
Estas coisas, é claro, sequer possuem alguma virtude em si mesmas; mas há uma
espécie de inocência, humildade e auto-esquecimento nelas que me deixam
desconfiado. O homem que verdadeiramente e desinteressadamente aprecie qualquer
coisa no mundo apenas por causa dela mesma, sem estar preocupado em coisa
alguma sobre o que os outros pensem a respeito, estará muito bem armado contra
alguns de nossos mais sutis métodos de ataque. Você sempre deverá tentar fazer
o paciente abandonar as pessoas, comidas ou livros dos quais realmente goste em
favor das "melhores pessoas", "mais adequadas comidas" e
"importantes livros". Eu conheci um ser humano que resistiu
bravamente a todas as tentações em ascender a escala social, até que descobri
como despertar nele um prazer fortíssimo pela lingüiça frita com cebola.
Resta
considerarmos o que fazer para consertar os prejuízos deste desastre. A coisa mais importante a
fazermos é conseguir que o paciente não faça mais nada. Enquanto ele não
conseguir transformar a mudança de vida em ações, não importa muito o que ele
pense a respeito dessa reconciliação. Deixe que ele fique como um animalzinho
dando voltas em redor disso. Leve-o a meditar muito no assunto, a escrever um
livro sobre isso, freqüentemente essa é uma forma excelente de esterilizar as
sementes que o Inimigo planta na alma humana. Permita que ele faça qualquer
coisa, menos AGIR. Nenhuma quantidade de piedade em sua imaginação e
sentimentos poderá nos causar qualquer problema, desde que mantenhamos tudo
isso longe da sua VONTADE. Como um dos seres humanos mesmo disse, os hábitos
ativos são fortalecidos pela repetição, ao passo que os passivos se enfraquecem
pela mesma continuidade. Quanto mais vezes ele se sentir inativo, menos ele se
disporá a agir, e ao longo do tempo, menos ele conseguirá sentir alguma coisa.
Seu afetuoso tio
SCREWTAPE
CARTA Número XIV
Meu caro
Wormwood:
O mais alarmante
no seu último
relatório do paciente é que ele não está mais fazendo nenhuma resolução
exagerada, como na época da sua conversão original. Nada de promessas
impossíveis de virtude eterna, nada de frases do tipo "nunca mais farei
isso", pelo contrário, ele permanece satisfeito com a espera da porção de
Graça para sua vida, mas tão somente a porção diária e a mixaria necessária
para suportar a próxima hora de tentação sem pecar. Isto é realmente MUITO
RUIM!
Só vejo uma saída para o quadro presente: Seu
paciente tem se tornado humilde, não é? Você tem conseguido chamar a atenção
dele para este aspecto? Todas as virtudes são menos formidáveis assim que o
homem percebe que as têm, mas isto é especialmente marcante com relação à
humildade! Surpreenda-o num momento em que estiver mergulhado na mais profunda
pobreza de espírito e contrabandeie sua atenção para um pensamento da linha "Caraca!
Mas não é que estou mesmo me tornando humilde?" Você observará quase
imediatamente a aparição de uma vaidade - a vaidade pelo fato de ser humilde.
Se ele se tocar quanto ao perigo e tentar abafar esta nova forma de orgulho,
faça-o orgulhoso por ter conseguido, e assim por diante, em quantos degraus que
você considere necessário. Mas não mantenha este jogo por muito tempo, claro,
pois isso poderia despertar o senso de humor dele e seu senso de proporção. Se
isso ocorrer, ele simplesmente dará risada na sua cara e irá tranqüilamente
para a cama.
Há porém maneiras bem lucrativas de prender a
atenção dele na virtude da Humildade. A respeito desta virtude - bem como das
demais - o Inimigo quer tirar a atenção dos homens de si mesmos, canalizando-a
nEle mesmo e nos próximos do paciente. Todo o trabalho que Ele realiza, bem
como seu cuidado pessoal está tão somente voltado para conseguir isso dos seres
humanos. Na verdade, acredito firmemente que toda esta guerra terrível só faz
sentido para Ele quando consegue este tipo de objetivo destes vermes
rastejantes.
Portanto, você precisa arrancar do paciente o verdadeiro
sentido da Humildade. Deixe-o imaginá-la como um conjunto de opiniões a
respeito de seus talentos e caráter. Alguns talentos, eu bem sei, ele possui de
verdade. Fixe sua mente no aspecto de que humildade é nada menos que tentar
acreditar que estes talentos não valem tanto quanto ele imagina. Não resta
dúvida de que ele é mesmo menos virtuoso do que pensa, mas isso não tem nenhuma
importância para nós. A melhor coisa é fazer com que ele avalie uma opinião
para alguma qualidade de forma errada e se perca nestes valores, pois com isso
conseguiremos introduzir um elemento de desonestidade no processo e o faremos
crer piamente em mentiras interessantes. Por este método, milhares de humanos
tem sido conduzidos a acreditar que a humildade significa mulheres lindas
afirmarem que são feias e acreditarem nisso, bem como homens brilhantes
aceitarem que ser humildes significa dizerem e acreditarem que são retardados
mentais. E uma vez que ele está tentando acreditar, isso tudo pode desembocar
em verdadeiras insanidades sem que ele ao menos desconfie de alguma coisa. Para
se antecipar à estratégia do Inimigo, precisamos considerar Seus objetivos. O
Inimigo quer trazer o homem a um estado de mente no qual ele poderia desenhar a
mais extraordinária catedral de todos os tempos, e saber que de fato ela era
incomparável, e se alegrar em extremo por tê-la desenhado, sem se sentir nem um
miligrama menos feliz (ou mais) se soubesse que tinha sido desenhada por outra
pessoa. O Inimigo quer, no final, que ele seja tão livre de qualquer opinião em
seu próprio favor que consiga alegrar-se por seus próprios talentos tão
francamente e agradecidamente quanto pelos talentos dos seus semelhantes, ou por uma manhã de sol, ou ao ver um elefante ou uma cachoeira.
Ele quer cada homem, ao longo de sua vida, apto a reconhecer todas as criaturas
(mesmo Ele próprio) como coisas gloriosas e excelentes. Ele quer matar em todos
eles o amor-próprio tão rápido quanto possível, mas em Sua política de
longo-prazo, temo eu, Ele devolve a eles tudo que lhes tirou, como um novo tipo
de amor-próprio que se espalha por toda a raça humana, em forma de caridade,
gratidão por todos, inclusive por ele mesmo. E quando finalmente eles conseguem
realmente aprender a amar seu próximo como a eles mesmos eles serão capazes de
amar a si mesmos como a seus semelhantes. Pois nunca podemos nos esquecer que
da mais repugnante e incompreensível característica em nosso Inimigo, que é
amar realmente os bípedes lisos. Ele os criou, e sempre devolve com a mão
direita tudo que lhes havia tirado com a esquerda no final das contas.
Nosso grande
esforço, portanto, está em manter a
mente do homem presa ao valor que ele mesmo tem. Ele os conduz a se
considerarem arquitetos e poetas excepcionais por alguns instantes, para em
seguida se esquecerem disso, enquanto nós fazemos de tudo para os humanos se
concentrarem, gastando muito tempo e dores pensando neles mesmos como coisas
péssimas. Seus esforços para instilar ou a vanglória ou a falsa modéstia no
paciente irão portanto distanciá-lo do Inimigo apenas se ele fixar a mente,
meditando horas e horas acerca de suas virtudes ou defeitos. Os escritos
do Inimigo nunca ensinaram homem algum a meditar e ficar horas analisando a si
próprios... mas felizmente outra arma poderosa que temos ainda é a profunda
ignorância da raça humana acerca dos mesmos escritos.
Preciso
acrescentar que o Inimigo trabalhará no sentido de que sua vítima tenha consciência de que foi
criada por Ele e deve tudo a ele. Se eles não se criaram a si próprios,
certamente seus talentos também não dependeram grande coisa de seus esforços
pessoais. Portanto, quando um humano se orgulha por ser culto, e acha ridículo
alguém se orgulhar pela cor do cabelo, apenas não percebeu que é culto porque o
Inimigo lhe deu a inteligência, saúde, recursos para estudar, os livros, o
tempo livre para tanto e mesmo a vontade de obter conhecimento. Mantenha-o
neste tipo de ignorância, e perceberá resultados interessantes. Tenho
observado que mesmo a respeito dos próprios pecados, não é intenção do Inimigo
que gaste muito tempo pensando.
Seu afetuoso tio
SCREWTAPE
CARTA Número XV
Meu caro Wormwood:
Tenho reparado, é claro, que os humanos estão experimentando uma
certa calmaria na sua guerra européia - que eles pateticamente chamam de
"A Guerra" - e não estou surpreso de que haja uma patetice
equivalente nas ansiedades do seu paciente. Estamos interessados em mantê-lo
tranqüilo a respeito da guerra, ou preocupadíssimo com ela? Tanto o medo
torturante quanto a calma tola são estados de mente desejáveis por nós. Nossa
escolha entre uma ou outra depende de importantes questões, as quais passo a
comentar.
Os homens vivem
presos ao tempo, mas nosso Inimigo os destinou à Eternidade. Ele, portanto, creio eu, quer a atenção deles
presa primordialmente a duas coisas: A Eternidade em si e ao ponto do tempo que
eles chamam de "Presente", uma vez que o mesmo presente é exatamente
o ponto do tempo que toca a Eternidade. A partir do presente momento, e
somente dele, os humanos tem têm uma experiência análoga à experiência que
nosso Inimigo tem da realidade como um todo em sua liberdade solitária, e Ele
realmente a oferece a eles. Ele poderia então tê-los continuamente
ocupados a respeito da Eternidade (o que significa estarem ocupados com Ele) ou
com o Presente -ocasião para meditação sobre a união eterna deles com
Ele ou a constatação de sua separação do Criador, ou ainda empenhados em
obedecer à voz da consciência conformando-se em levar sobre seus ombros suas
próprias cruzes, buscando graça para cada dia e mostrando gratidão por qualquer
prazer presente.
Nossa tarefa é levá-lo cada vez mais para longe do eterno e do
Presente. Com isto na mira, nós às vezes tentamos encaminhar um humano (seja
uma viúva ou um pós-graduado) a viver no passado. Mas isto tem valor limitado,
pois eles já tem algum conhecimento real do passado, e sabem que ele se
apresenta com uma natureza razoavelmente definida, assemelhando-se até aí com a
Eternidade. E muito melhor fazê-los viver no Futuro. As necessidades
biológicas deles já fazem com que suas paixões apontem para esta
direção, naturalmente. Por causa disso, seus pensamentos voltados para o que
ainda virá estão cheios de esperanças e medos. Ainda por cima, ele é
desconhecido para eles, portanto se conseguirmos concentrar o pensamento deles
no futuro, na verdade eles estarão vivendo em um mundo irreal. Em resumo, o
Futuro é, de todas as coisas, o que menos se parece com a Eternidade.
Ela é a parte mais cabalmente temporal do tempo - pois o passado está definido
e não flui mais, e o presente está totalmente sob o brilho dos raios eternos de
luz. Partindo deste fato, temos encorajado fortemente as doutrinas como a
Evolução Criadora, o Humanismo Científico ou o Comunismo, os quais fixam sempre
a atenção dos homens no Futuro. Daí decorre que praticamente todos os vícios
tem suas raízes no Futuro. A Gratidão olha para o Passado e o amor enfoca
o Presente; mas o medo, a avareza, a luxúria e a ambição sempre estão olhando
para frente. Não pense na luxúria e sensualidade como exceções. Quando o prazer
presente chega, o pecado (que é unicamente o que nos interessa) já havia
acontecido. O prazer é apenas a parte do processo que detestamos, e se
pudéssemos, certamente o excluiríamos do processo; ele é exatamente a parte
proporcionada pelo Inimigo, e é sempre experimentado no Presente. O pecado que
nós conseguimos produzir, encarou o futuro.
Para ser preciso,
o Inimigo também quer
que os homens pensem no Futuro - mas apenas o necessário para agora planejarem
seus atos de justiça e caridade, que se constituirão no seu dever de amanhã.
Porém, o dever de planejar as obrigações de amanhã, é uma obrigação de hoje, e
portanto, embora o conteúdo pensado e planejado esteja no futuro, o dever -
como todos os deveres em geral – diz respeito ao presente. E é portanto aqui que divergimos do Inimigo. Ele não quer os
homens olhando muito para o Futuro, de forma a deixarem seus tesouros no
porvir. Mas nós queremos. O ideal do Inimigo é que o homem, tendo trabalhado o
dia inteiro pelo bem da posteridade (se esta for sua vocação) se despreocupe
totalmente a esse respeito, confiante que os céus haverão de proporcionar os
melhores efeitos a partir de seu trabalho. Ou seja, ele apenas queira cumprir
seus deveres, sem grandes cuidados do que acontecerá em decorrência deles. Já
nós, queremos um homem que viva se chafurdando no Futuro - assaltado pelas
visões de um céu ou inferno que esteja para cair sobre ele de repente - pronto
para quebrar qualquer mandamento do Inimigo no Presente, se vislumbrar que
poderá ter um céu em vida no Futuro - ficando sua fé firmada na dependência do
sucesso ou fracasso de situações e esquemas que ele simplesmente morrerá antes
que aconteçam. Nós queremos essa raça de vermes inteira perseguindo
perpetuamente o pote de ouro no fim do arco-íris, nunca sendo honesta, nunca
sendo generosos, nem felizes agora, mas sempre usando todos os talentos que lhes
foram dados no presente como combustível depositado no altar onde cultuam o
futuro.
Segue portanto,
de modo geral, que é mais
produtivo encher seu paciente com ansiedade e esperança (não importando grande
o que você use para isso) nesta guerra, de forma a ele não conseguir mais viver
o presente. Mas a expressão "viver no presente" tem duplo sentido.
Ela pode descrever um processo que é realmente uma simples preocupação com o
Futuro, com toda a ansiedade possível. Seu paciente poderá demonstrar
despreocupação com respeito ao Futuro apenas porque o seu Futuro aparentemente
será muito agradável (como imaginou o homem que ampliou seus celeiros na
parábola do Inimigo), e ele tem a sensação que esta fase vai durar muito tempo.
Quanto mais esse estado durar, melhor será para nós, porque ela pode desabar em
ruínas ao menor sintoma de virada de rumo, e isso somente estará acumulando na
alma dele mais desapontamento, mais impaciência e egoísmo quando suas falsas
esperanças são desfeitas. Se, por outro lado, ele estiver ciente dos horrores
que podem cair sobre ele e estiver orando pelo recebimento de virtudes que lhe
facultem encarar os mesmos horrores, enquanto só tem olhos para o Presente -
pois é sempre no Presente que estão todos os deveres - e também toda a Graça,
todo o conhecimento, e todos os prazeres, seu estado estará altamente
indesejável para nós, e deverá portanto ser atacado sem tréguas. A esse
respeito, nosso Exército Filológico tem feito um bom trabalho; tente a palavra
"Complacência" com ele. Mas claro, parece-me provável que ele esteja
realmente vivendo no Presente apenas porque está gozando de boa saúde, tem um
emprego estável e um local agradável para morar. Mas não importa! No seu lugar,
eu faria tudo que pudesse para destruir essas sensações agradáveis. Todo
fenômeno natural tende a militar contra nós. E afinal de contas, por que
iríamos permitir que este idiota fosse feliz?
Seu afetuoso tio
SCREWTAPE
CARTA Número XVI
Meu caro Wormwood:
Em sua última carta,
mencionou de passagem que o paciente continuou indo a uma igreja, e só a uma,
desde sua conversão, e que não está totalmente satisfeito com ela.
Posso lhe perguntar o que é o
que você anda fazendo? por que não tenho ainda um relatório sobre as causas de
fidelidade dele à igreja paroquial? Percebe que, a não ser que seja por
indiferença, isto é muito mau? Sem dúvida sabe que, se um homem não pode ser
curado da mania de ir à igreja, o melhor
que se pode fazer é mandá-lo percorrer todo o bairro, em busca da igreja que "goste", até que se
converta em um experimentador ou conhecedor de Igrejas.
As razões disto são óbvias.
Em primeiro lugar, a organização paroquial sempre deve ser atacada, porque, ao
ser uma unidade de lugar, e não de gostos, agrupa pessoas de diferentes classes
e psicologias no tipo de união que o Inimigo deseja. O princípio da
congregação, em troca, faz de cada igreja uma espécie de clube, e, finalmente,
se tudo for bem, um grupinho ou facção. Em segundo lugar, a busca de uma igreja
"conveniente" faz do homem um crítico, enquanto o Inimigo quer que
seja um discípulo. O que Ele quer do leigo na igreja é uma atitude que possa,
de fato, ser crítica, portanto que possa desprezar o que for falso ou inútil,
mas que seja totalmente não crítico no tanto que não valora: não perca o tempo
em pensar no que despreza, mas sim se abra em humilde e muda receptividade a
qualquer alimento, que lhe seja dado. (Note o quanto baixo, antiespiritual e
incorrigivelmente vulgar que é o Inimigo!) Esta atitude, principalmente durante
os sermões, dá lugar a uma disposição
(extremamente hostil a toda nossa política) em que as pregações falam realmente
à alma humana. Dessa forma, não há um sermão, ou um livro, que não possa ser
perigoso para nós, se se formar neste estado de ânimo; assim, por favor,
mexa-se, e mande a esse tolo fazer a ronda das Igrejas vizinhas, logo que seja
possível. Seu trabalho não nos deu até agora muita satisfação.
Examinei no arquivo as duas
Igrejas que estão mais próximas dele. As duas têm certas vantagens. Na primeira
delas, o vigário é um homem que leva tanto tempo dedicado a aguar a fé, para
fazê-la mais acessível a uma congregação supostamente incrédula e teimosa, e é
ele quem agora escandaliza aos paroquianos com sua falta de fé, e não o
contrário: minou o cristianismo de muitas almas. Sua forma de fazer o trabalho
é também admirável: com a finalidade dos leigos economizarem todas as
"dificuldades", abandonou tanto as lições quanto os salmos fixados
para cada ocasião, e agora, sem nem perceber, passeia eternamente em torno do pequeno
moinho de seus quinze salmos e suas vinte lições favoritas. Assim estamos a
salvo do perigo de que possa lhe chegar das Escrituras qualquer verdade que não
soe já familiar tanto a ele como a seu rebanho. Mas possivelmente seu paciente
não seja o bastante tolo para ir a esta igreja, ou, pelo menos, não ainda.
Na outra, temos o padre
Spike. Aos humanos é complicado, com freqüência, compreender a variedade de
suas opiniões: um dia é quase comunista, e no dia seguinte não está longe de
alguma espécie de fascismo teocrático; um dia é escolástico, e ao dia seguinte
está quase disposto a negar por completo a razão humana; um dia está imerso na
política, e ao dia seguinte declara que todos os estados deste mundo estão
igualmente "em espera
de juízo". É obvio, nós sim vemos o fio que o conecta tudo, que é o ódio.
O homem não pode resignar-se a exortar nada que não esteja calculado para
escandalizar, ofender, desconcertar, ou humilhar a seus pais e seus amigos. Um
sermão que tais pessoas pudessem aceitar seria, para ele, tão insípido como um
poema que fossem capazes de medir. Há também uma prometedora veia de
desonestidade nele: estamos ensinando-o a dizer "o magistério da
Igreja" quando na realidade quer dizer "estou quase certo de que recentemente li em um livro do Maritain
ou alguém parecido..." Mas devo lhe advertir que tem um defeito fatal: ele
crê de verdade. E isto pode pôr tudo a perder.
Mas essas duas Igrejas têm em
comum um bom ponto: ambas são Igrejas de facção. Acredito que já lhe adverti
antes que, se não se pode manter o seu paciente afastado da igreja, ao menos devesse estar violentamente
comprometido em alguma facção dentro dela. Não me refiro a verdadeiras questões
doutrinárias; com respeito a estas, quanto mais morno seja, melhor. E não são
as doutrinas no que nos apoiamos principalmente para produzir divisões: o
realmente divertido é fazer que se odeiem aqueles que dizem "missa" e
os que dizem "Santa comunhão", quando nenhum dos dois bandos poderia
dizer que diferença há entre as doutrinas do Hooker e de Tomás de Aquino, por
exemplo, de nenhuma forma que não fizesse água em cinco minutos. Tudo o que é
realmente pouco importante — círios, vestimenta, sei lá eu — é uma excelente
base para nossas atividades. Temos feito com que os homens esqueçam por
completo o que aquele indivíduo pestilento, Paulo, costumava ensinar a respeito
das comidas e outras coisas sem importância: ou seja, que o humano sem
escrúpulos devesse ceder sempre diante do humano escrupuloso. Alguém
acreditaria que não poderia deixar de precaver-se de sua aplicação a estas
questões: esperaria ver o "baixo" clero ajoelhando-se e benzendo-se,
não fosse que a consciência débil de seu irmão "alto" se visse
empurrada para a irreverência, e
ao "alto" abstendo-se de tais exercícios, não fosse empurrar à idolatria a seu irmão "baixo". E assim teria sido, a
não ser por nosso incessante trabalho; sem ele, a variedade de usos dentro da
Igreja da Inglaterra poderia haver-se convertido em um viveiro de caridade e de humildade.
Seu afetuoso tio, SCREWTAPE
CARTA Número XVII
Meu caro Wormwood:
O tom depreciativo em que se
refere, em sua última carta, à gula, como meio de capturar almas, não revela
nada não ser sua ignorância. Um dos grandes lucros dos últimos cem anos foi
amortecer a consciência humana no referente a essa questão, de tal forma que
dificilmente poderá encontrar agora um sermão pronunciado contra ela, ou uma
consciência preocupada com ela, a todo a extensão da Europa. Isto se levou a
efeito, em grande parte, concentrando nossas forças na promoção da gula por
aprimoramento, não na gula do excesso. A mãe de seu paciente, conforme sei pelo
dossiê e você poderia saber pelo Gluboso, é um bom exemplo. Ficaria perplexa —
um dia, espero, ficará perplexa — se soubesse que toda sua vida esteve
escravizada por este tipo de sensualidade, o que lhe é perfeitamente
imperceptível pelo fato de que as quantidades em questão são pequenas. Mas, que importam as quantidades, contanto
possamos nos servir do estômago e do paladar humano para provocar impaciência,
dureza e egocentrismo? Gluboso apanhou direitinho esta anciã. Esta senhora é um
verdadeiro pesadelo para as anfitriãs e os criados. Sempre está recusando o que
lhe ofereceram, dizendo, com um suspiro e um sorriso coquete: "OH, por
favor, por favor... tudo o que quero é uma xicarazinha de chá, e um pedacinho
pequenino de torrada crocante". Percebe? Como o que quer é mais pequeno e
menos caro que o que lhe puseram diante, nunca reconhece como gula seu afã de conseguir o que quer, por molesto que possa parecer
aos outros. Enquanto satisfaz seu apetite, acredita estar praticando a
moderação. Em um restaurante cheio de gente, dá um gritinho diante do prato que uma garçonete curvada de trabalho lhe
acaba de servir, e diz: "isso, OH, é muito, muito! Leve e me traga algo
assim como a quarta parte". Se lhe fosse pedida uma explicação, diria que
o faz para não desperdiçar. Na verdade, faz porque o tipo particular de
aprimoramento a que a escravizamos não suporta a visão de mais comida que a que
nesse momento gosta.
O autêntico valor do trabalho
calado e dissimulado que Gluboso levou a cabo, durante anos, com esta velha,
pode ser medido pela força com que seu estômago domina agora toda sua vida. Ela
se encontra em um estado de ânimo que pode ser representado pela frase
"tudo o que quero". Tudo o que quer é uma xicrinha de chá feito como
é devido, ou um ovo
corretamente passado por água, ou uma fatia de pão adequadamente torrada; mas
nunca encontra nenhum criado nem amigo que possa fazer estas coisas tão
singelas "como é devido", porque
seu "como é devido" oculta uma exigência insaciável dos exatos e
quase impossíveis prazeres do paladar que crê recordar do passado, um passado
que ela descreve como "os tempos em que podia conseguir um bom
atendimento", mas que nós sabemos que são os tempos em que seus sentidos
eram mais facilmente agradados e nos que outro tipo de prazeres a faziam menos
dependente dos da mesa. Enquanto isso, a frustração cotidiana produz um
cotidiano mau humor: as cozinheiras se despedem e as amizades se esfriam. Se alguma
vez o Inimigo introduzir em sua mente a mais leve suspeita de que possa estar
muito interessada pela comida, Gluboso a rebate lhe sussurrando que não lhe
importa o que ela mesma come, mas que "gosta que seus filhos comam coisas
agradáveis". Naturalmente, na verdade, sua avareza foi uma das causas
principais do pouco à vontade com que seu filho se sentiu em casa durante
muitos anos.
Pois bem, seu paciente é
filho da mãe dele, e embora, acertadamente, você se dedique-te a lutar mais
firme em outras frentes, não deve esquecer uma pequena e silenciosa infiltração no referente à gula. Como é um homem, não é tão fácil
de ser apanhado com a camuflagem do "Tudo o que quero": a melhor
maneira de fazer com que os homens pequem na gula é apoiando-se em sua vaidade.
Terá que fazer que se achem muito entendidos em questões culinárias, para lhes incentivar a dizer que
descobriram o único restaurante da cidade onde os filés estão de verdade
"corretamente" refogados. O que começa como vaidade pode converter-se
em seguida, paulatinamente, em costume. Mas, de qualquer modo que o aborde, o
bom é levá-lo a esse estado de ânimo em que a negação de qualquer satisfação —
não importa qual, champagne ou chá, esteja acostumado a Colbert ou cigarros — o
"irrita", porque então sua caridade, sua justiça e sua obediência
estarão totalmente a sua mercê.
O mero excesso de comida é
muito menos valioso que o aprimoramento. É útil, sobretudo, a modo de
preparação da artilharia antes de lançar ataques contra a castidade. Nesta
matéria, como em qualquer outra, deve manter o seu homem em um estado de falsa
espiritualidade; nunca o deixe perceber o lado médico da questão. Mantenha-o se
perguntando que pecado de orgulho ou que falta de fé lhe pôs em nas mãos,
quando a simples análise do que comeu
ou bebeu durante as últimas vinte e quatro horas poderia lhe revelar de onde
procedem suas munições e lhe permitiria, por conseguinte, pôr em perigo suas
linhas de provisionamento mediante uma muito ligeira abstinência. Se tiver que
pensar no aspecto médico da castidade, lhe solte a grande mentira que temos
feito que engulam os humanos ingleses:
que o exercício físico excessivo, e a conseqüente fadiga, são especialmente
favoráveis para esta virtude. Alguém poderia muito bem perguntar-se, em vista
de a notória lubricidade dos marinheiros e dos soldados,
como é possível que acreditem nisso. Mas nos servimos dos professores de escola
para difundir esta lábia, homens a quem de verdade a castidade só interessava
como desculpa para fomentar a prática dos esportes, e que, portanto,
recomendavam tais jogos como ajuda à castidade. Mas todo este assunto é muito
extenso para abordá-lo ao final de uma carta.
Seu carinhoso tio,
SCREWTAPE
CARTA Número XVIII
Meu caro Wormwood:
Até com Babalapo você deve
ter aprendido na escola, a técnica rotineira da tentação sexual, e já que para
nós os espíritos, todo este assunto é
grandemente tedioso (embora necessário como parte de nosso treinamento), vou
deixar passar. Mas nas questões mais amplas implicadas neste assunto acredito
que ainda tem muito que aprender.
O que o Inimigo exige dos
humanos adota a forma de um dilema: ou completa abstinência ou monogamia sem
paliativos. Desde a primeira grande vitória de Nosso Pai, temos tornado muito
difícil a primeira escolha. E levamos uns quantos séculos fechando a segunda
como via de escape. Conseguimos isso por meio dos poetas e os novelistas,
convencendo aos humanos de que uma curiosa, e geralmente efêmera, experiência
que eles chamam "estar apaixonados" é a única base respeitável para o
matrimônio; de que o matrimônio pode, e deve, fazer permanente esse entusiasmo;
e de que um matrimônio que não o consegue
deixa de ser interessante. Esta idéia é uma paródia de uma idéia procedente do Inimigo.
Toda a filosofia do Inferno
descansa na admissão do axioma de que uma coisa não é outra coisa e, em
especial, de que um ser não é outro ser. o que é meu, é meu, e que é seu, é
seu. O que um ganha, o outro perde. Até um objeto inanimado é o que é,
excluindo a todos outros objetos do espaço que ocupa; se se expandir, o faz
apartando os outros objetos, ou absorvendo-os. Um ser faz o mesmo. Com os
animais, a absorção adota a forma de comer; para nós, representa a sucção da
vontade e a liberdade de um ser mais fraco por um mais forte. "Ser" significa
"ser competindo".
A filosofia do Inimigo não é
mais nem menos que uma contínua tentativa de evitar esta verdade evidente. Sua
meta é uma contradição. As coisas têm que ser muitas, mas também, de algum
modo, só uma. A esta impossibilidade Ele chama Amor, e esta mesma monótona
panacéia pode ser detectada em tudo o que Ele faz e inclusive tudo o que Ele é
ou pretende ser. Deste modo, Ele não está satisfeito, nem sequer Ele mesmo,
sendo uma mera unidade aritmética; pretende ser três ao mesmo tempo que um, com
o fim de que esta tolice do Amor possa encontrar um ponto de apoio em Sua
própria natureza. No outro extremo da escala, Ele introduz na matéria esse
indecente invento que é o organismo, no que as partes se vêem pervertidas de
seu natural destino — a competência — e se vêem obrigadas a cooperar.
Sua autêntica motivação para
escolher o sexo como método de reprodução dos humanos está muito clara, em
vista do uso que tem feito dele. O sexo poderia ter sido, desde nosso ponto de
vista, completamente inocente. Poderia ter sido meramente uma forma a mais de
um ser mais forte se alimentar de outro mais fraco — como acontece, de fato,
entre as aranhas, que culminam suas núpcias com a noiva comendo ao noivo —. Mas nos humanos, o Inimigo associou gratuitamente o afeto
com o desejo sexual. Também tem feito que sua descendência seja dependente dos
pais, e impulsionou aos pais a mantê-la, dando lugar assim à família, que é
como o organismo, só que pior, porque seus membros estão mais separados, mas
também unidos de uma forma mais consciente e responsável. Tudo isso acaba
sendo, de fato, um artefato mais para colocar o Amor.
Agora vem o bom do assunto. O
Inimigo descreveu ao casal casado como "uma só carne". Não disse
"um casal felizmente casado", nem "um casal que se casou porque
estava apaixonado", mas se pode conseguir que os humanos não tenham isso
em conta.
Também pode fazê-los esquecer que o homem ao
que chamam Pablo não o limitou aos casais casados. Para ele, a mera copulação
dá lugar a "uma só carne". Desta forma, pode-se conseguir que os
humanos aceitem como elogios retóricos do "amor" o que eram, de fato,
simples descrições do verdadeiro significado das relações sexuais. O certo é
que sempre que um homem deite com uma mulher, gostem ou não, estabelece-se entre
eles uma relação transcendente que deve ser eternamente desfrutada ou
eternamente suportada. A partir da afirmação verdadeira de que esta relação
transcendente estava prevista para produzir — e, se se abordar obedientemente,
o fará com muita freqüência — o afeto e a família, pode-se fazer que os humanos
infiram a falsa crença de que a mescla de afeto, temor e desejo que chamam
"estar apaixonados" é unicamente o que
faz feliz ou santo o matrimônio. O engano é fácil de provocar, porque "apaixonar-se" é algo que com muita
freqüência, na Europa ocidental, precede matrimônios contraídos em obediência
aos propósitos do Inimigo, isto é, com a intenção da fidelidade, a fertilidade
e a boa vontade; assim como a emoção religiosa muito freqüentemente, mas não
sempre, acompanha a conversão. Em outras palavras, os humanos devem ser
induzidos a considerar como a base do matrimônio uma versão muito colorida e
distorcida de algo que o Inimigo realmente promete como seu resultado. Isto tem
duas vantagens. Em primeiro lugar, os humanos que não têm o dom da continência
podemos dissuadir de procurar no matrimônio uma solução, porque não se sentem
"apaixonados" e, graças a nós, a idéia de casar-se por qualquer outro
motivo lhes parece vil e cínica. Sim, pensam isso. Consideram o propósito de
ser fiéis a uma sociedade de ajuda mútua, para a conservação da castidade e
para a transmissão da vida, como algo inferior que uma tempestade de emoção.
(Não esqueça de fazer que seu homem pense que a cerimônia nupcial é muito
ofensiva.) Em segundo lugar, qualquer rotina sexual, enquanto se proponha o
matrimônio como fim, será considerada "amor", e o "amor"
será usado para desculpar ao homem de toda culpa, e para lhe proteger de todas
as conseqüências de casar-se com
uma pagã, uma idiota ou uma libertina. Mas continuarei em minha próxima carta.
Seu afetuoso tio,
SCREWTAPE
CARTA Número XIX
Meu caro Wormwood:
Pensei muito a respeito da
pergunta que me faz em sua última carta. Se, como expliquei claramente, todos
os seres, por sua própria natureza, fazem-se a competência, e, portanto, a
idéia do Amor do Inimigo é uma contradição em seus termos, o que acontece com
minha reiterada advertência de que Ele realmente ama aos vermes humanos e
realmente deseja sua liberdade e sua existência contínua? Espero, meu querido
moço, que não lhe tenha mostrado a ninguém minhas cartas. Não é que isso
importe, naturalmente. Qualquer um veria que a aparente heresia em que tenho
caído é puramente acidental. Certamente, espero que compreenda, também, que
algumas referências aparentemente pouco elogiosas ao Bapalapo eram puramente em
tom de brincadeira. Na verdade, tenho por ele o maior respeito. E, é obvio,
algumas referências que disse a respeito de não lhe defender das autoridades
não foram a sério. Pode confiar que cuidarei de seus interesses. Mas guarda
todo debaixo de sete chaves.
A verdade é que, por mero
descuido, cometi o deslize de dizer que o Inimigo ama realmente aos humanos. O
que, naturalmente, é impossível. Ele é um ser; eles são diferentes, e seu bem
não pode ser o Dele. Todo Seu palavrório sobre o Amor deve ser um disfarce de
outra coisa; deve ter algum motivo real para criá-los e ocupar-se tanto deles.
A razão pela que alguém chega a falar como se Ele sentisse realmente este Amor
impossível é nossa absoluta incapacidade para descobrir esse motivo real. O que
pretende conseguir deles? Essa é a questão insolúvel. Não acredito que possa
fazer mal a ninguém que lhe diga que precisamente este problema foi uma das
causas principais da disputa de Nosso Pai com o Inimigo. Quando se discutiu
pela primeira vez a criação do homem e quando, inclusive nessa fase, o Inimigo
confessou abertamente que previa um certo episódio referente a uma cruz. Nosso
Pai, muito logicamente, solicitou uma entrevista e pediu uma explicação. O Inimigo
não deu mais resposta que inventar a lábia sobre o Amor desinteressado que
desde então tem feito circular. Naturalmente, Nosso Pai não podia aceitar isto.
Implorou ao Inimigo que pusesse Suas cartas sobre a mesa, e Lhe deu todas as
oportunidades possíveis. Admitiu que tinha verdadeira necessidade de conhecer o
segredo; o Inimigo lhe replicou: "Queria com todo meu coração que o
conhecesse". Imagino que foi nesse momento da
entrevista quando o desgosto de Nosso Pai por tão injustificada falta de
confiança lhe fez afastar-se a uma distância infinita de Sua Presença, com uma
rapidez que deu lugar à ridícula história inimiga de que foi expulso, à força,
do Céu. Depois disso, começamos a compreender por que nosso Opressor foi tão
reservado. Seu trono depende do segredo. Alguns membros de Seu partido
admitiram com freqüência que, se alguma vez chegássemos a compreender o que
entende Ele por Amor, a guerra terminaria e voltaríamos a entrar no Céu. E
nisso consiste a grande tarefa. Sabemos que Ele não pode amar realmente: ninguém pode: não tem sentido. Se tão somente
pudéssemos averiguar o que é que realmente se propõe! examinamos hipótese por
hipótese, e ainda não pudemos descobrir. Entretanto, não devemos perder nunca a
esperança; teria mais e mais complicadas coleções de dados, mais e mais
completas, maiores recompensa aos investigadores que façam algum progresso,
castigos mais e mais terríveis para aqueles que fracassem, tudo isto, seguido e
acelerado até o mesmo fim do tempo, não pode, certamente, deixar de ter êxito.
Você se queixou de que minha
última carta não deixa claro se considero "amor" como um estado
desejável para um humano ou não. Mas Wormwood, de verdade, esse é o tipo de
pergunta que se espera que eles façam! Deixe-os discutir se o "Amor",
ou o patriotismo, ou o celibato, ou as velas nos altares, ou a abstinência do
álcool, ou a educação, são "bons"
ou "maus". Não
percebe que não há resposta? Não tem a mínima importância, exceto a tendência
de um determinado estado de ânimo, em umas determinadas circunstâncias, mover um
paciente particular, em um momento particular, para o Inimigo ou para nós. Em conseqüência, seria muito conveniente fazer que o
paciente decidisse que o Amor é "bom"
ou "mau". Se se tratar de um homem arrogante, com um desprezo pelo
corpo, apoiado realmente no aprimoramento, mas que ele confunde com a pureza —
e um homem que desfruta escarnecendo daquilo que a maior parte de seus
semelhantes passam —, certamente os deixe se decidirem contra o Amor. Incuta
nele um ascetismo altivo e em seguida, quando tiver separado sua sexualidade de
tudo aquilo que poderia humanizá-la, caia sobre ele com uma forma muito mais
brutal e cínica da sexualidade. Se, pelo contrário, trata-se de um homem
emotivo, crédulo, alimente-o de poetas menores e de novelistas de quinta
categoria, até que o tenha feito acreditar que o "Amor" é
irresistível e além disso, de algum modo, intrinsecamente meritório. Esta
crença não é de muita utilidade, isso eu lhe garanto, para provocar faltas
casuais de castidade; mas é uma receita incomparável para conseguir prolongados
adultérios "nobres", românticos e trágicos, que terminam, se todo
correr bem, em assassinatos e suicídios. Se falhar, pode usar isso para
empurrar o paciente a um matrimônio útil. Porque o matrimônio, embora seja um
invento do Inimigo, tem seus usos. Deve haver várias mulheres jovens no bairro
de seu paciente que fariam extremamente difícil para ele viver a vida cristã,
se tão somente conseguisse persuadi-lo a se casar com uma delas. Por favor, me
envie um relatório sobre isto na próxima vez que me escrever. Enquanto isso,
que fique bem claro que este estado de amor não é, em si, necessariamente favorável nem para nós nem para
o outro bando. É, simplesmente, uma ocasião que tanto nós como o Inimigo
tratamos de explorar. Como a maior parte das coisas que excitam aos humanos,
tais como a saúde e a enfermidade, a velhice e a juventude, ou a guerra e a paz, do ponto de vista da vida espiritual
é, sobretudo, matéria prima.
Seu afetuoso tio,
SCREWTAPE
CARTA Número XX
Meu caro Wormwood:
Vejo com grande desgosto que
o Inimigo pôs um fim forçoso, no momento, a seus ataques diretos à castidade do
paciente. Devia saber que, no final, sempre o faz, e ter parado antes de chegar
a esse ponto. Porque, tal como estão as coisas, agora seu homem descobriu a perigosa verdade de que estes
ataques não duram para sempre; em conseqüência, não pode voltar a usar a que,
depois de tudo, é nossa melhor arma: a crença dos humanos ignorantes de que não
há esperança de livrar-se de nós, exceto rendendo-se. Suponho que tratou de
persuadi-lo de que a castidade é pouco sadia, não?
Ainda não recebi teu
relatório a respeito das mulheres jovens da vizinhança. Eu o queria
imediatamente, porque se não podermos nos servir de sua sexualidade para
fazê-lo licencioso, devemos tratar de usá-la para promover um matrimônio
conveniente. Enquanto isso eu gostaria de lhe dar algumas idéias sobre o tipo
de mulher — me refiro ao tipo físico — com que devemos incitá-lo a se
apaixonar-se, se um "amor" for o máximo que pudermos conseguir.
Espíritos que estão muito
mais abaixo na Baixahierarquia, do que você e eu, decidem esta questão, por
nós, e é óbvio, de uma forma provisória. É o trabalho desses grandes mestres
produzir em cada época uma separação geral do que possa se chamar o
"gosto" sexual. Isto, conseguem trabalhando com o pequeno círculo de
artistas populares, costureiras, atrizes e anunciadores que determinam o que se
considera "de moda". Seu propósito é separar cada sexo dos membros do
outro com quem teria matrimônios provavelmente mais espiritualmente úteis,
felizes e férteis. Assim, triunfamos já durante muitos séculos sobre a
natureza, até o ponto de fazer desagradáveis para quase todas as mulheres
certas características secundárias do varão (como a barba); e isto é mais
importante do que poderia supor. Com respeito ao gosto masculino, variamos
muito. Em uma época o dirigimos ao tipo de beleza estatuesco e aristocrático,
mesclando a vaidade dos homens com seus desejos, e estimulando à raça a
engendrar, sobretudo, das mulheres mais
arrogantes e pródigas. Em outra época, selecionamos um tipo exageradamente
feminino, pálido e lânguido, de forma que a loucura e a covardia, e toda a
falsidade e estreiteza mental geral que as acompanham, estivessem muito
solicitadas. Atualmente vamos em direção contrária. A era do jazz sucedeu a era
da valsa, e agora ensinamos aos homens a gostarem de mulheres cujos corpos
apenas se podem distinguir dos dos moços. Como este é um tipo de beleza ainda
mais passageiro que a maioria, assim acentuamos o crônico horror a envelhecer
da mulher (com muitos excelentes resultados), e a fazemos menos desejosa e
capaz de ter bebês. E isso não é tudo.
Arrumamos isso para conseguir uma grande incremento na licença que a sociedade permite à representação do nu aparente
(não do verdadeiro nu) na arte, e a sua exibição no cenário ou na praia. É uma
falsificação, é claro; os corpos da arte popular estão enganosamente
desenhados; as mulheres reais em traje de banho ou em malhas estão em realidade
apertadas e arrumadas para que pareçam mais firmes e esbeltas do que a natureza
permite a uma mulher desenvolvida. Mas, ao mesmo tempo, o mundo moderno a
ensina a acreditar que é muito "franco" e "sadio", e que
está voltando para a natureza. Em conseqüência, estamos orientando cada vez
mais os desejos dos homens para
algo que não existe; fazendo cada vez importante o papel do olho na sexualidade
e, ao mesmo tempo, fazendo suas exigências cada vez mais impossíveis. É fácil
prever o resultado!
Essa é a estratégia geral do
momento. Mas, dentro desse marco, ainda lhe será possível estimular os desejos
de seu paciente em uma de duas direções. Descobrirá, se examinar cuidadosamente o coração de qualquer humano,
que está obcecado por, pelo menos, duas mulheres imaginárias: uma Vênus
terrestre, e outra infernal; e que seu desejo varia qualitativamente de acordo
com seu objeto. Há um tipo pelo qual seu desejo é naturalmente submisso ao
Inimigo — facilmente misturável com a caridade, obediente ao matrimônio,
totalmente colorido por essa luz dourada de respeito e naturalidade que
detestamos —; há outro tipo que deseja brutalmente, e que deseja desejar
brutalmente, um tipo melhor utilizável para separá-lo totalmente do matrimônio
mas que, inclusive dentro do matrimônio, tenderia a tratar como a uma pulseira,
um ídolo ou uma cúmplice. Seu amor pelo primeiro tipo poderia ter algo do que o
Inimigo chama maldade, mas só acidentalmente; o homem desejaria que ela não
fosse a mulher de outro, e lamentaria não poder amá-la licitamente. Mas com o
segundo tipo, o que quer é sentir o mal, que é o "sabor" que procura:
o que lhe atrai é, em seu rosto, a animalidade visível, ou a tristeza, ou a
destreza, ou a crueldade; e, em seu corpo, um
pouco muito diferente do que está acostumado a chamar beleza, algo que pode
inclusive, em um momento de lucidez, descrever como fealdade, mas que, por
nossa arte, podemos conseguir que incida em sua obsessão particular.
A verdadeira utilidade da
Vênus infernal é, sem dúvida, como prostituta ou amante. Mas se seu homem for um cristão, e se lhe ensinaram bem as
tolices sobre o "Amor" irresistível e que justifica tudo,
freqüentemente pode induzi-lo a que se case com ela. Mas como é algo que vale a pena conseguir. Terá fracassado com
respeito à fornicação e aos vícios solitários, mas há outros, e mais indiretos,
meios de servir-se da sexualidade de um homem para obter sua perdição. E, por
certo, não só são eficazes, mas também deliciosos; a infelicidade que produzem
é de um tipo muito duradouro e delicioso.
Seu afetuoso tio,
SCREWTAPE
CARTA Número XXI
Meu caro Wormwood:
Sim, um período de tentação
sexual é um excelente momento para levar a cabo um ataque secundário à
impaciência do paciente. Pode ser, inclusive, o ataque principal, enquanto
pense que é o subordinado. Mas aqui, como em todo o resto, deve preparar o caminho para seu ataque moral nublando sua
inteligência.
Aos homens não irrita a mera
desgraça, mas sim a desgraça que consideram uma afronta. E a sensação de ofensa
depende do sentimento de que uma pretensão legítima lhes foi negada. Portanto,
quanto mais exigências na vida possa fazer seu paciente ter, mais freqüentemente ele se sentirá ofendido e, em
conseqüência, de mau humor. Poderá observar que nada o enfurece tanto como
encontrar-se num momento em que contava com algo que estava ao seu dispor, e
isso lhe ser arrebatado de imprevisto. O que o tira do equilíbrio é o visitante
inesperado (quando havia uma promessa de noite tranqüila), ou a mulher faladora
de um amigo (que aparece quando ele desejava ter uma conversa particular com o
amigo). Ainda não é tão duro e preguiçoso como para que tais testes sejam, em
si mesmos, muito para sua cortesia. Irritam-no porque considera seu tempo como
propriedade dele, e sente que o estão roubando. Deve, portanto, conservar
ciumentamente em sua cabeça a curiosa suposição: "Meu tempo é meu".
Deixe-o ter a sensação de que começa cada dia como o legítimo dono de vinte e
quatro horas. Faça que considere como uma penosa carga a parte desta
propriedade que tem que entregar a seus patrões, e como uma generosa doação
aquela parte adicional que atribui a seus deveres religiosos. Mas o que nunca deve
lhe permitir é duvidar que o total do qual foram feitas tais deduções era, em
algum misterioso sentido, seu próprio direito pessoal.
Essa é uma tarefa delicada. A
suposição que quer que ele continue tendo é tão absurda que, se alguma vez ele
ficar em dúvida, nem sequer nós poderemos encontrar o menor argumento em sua
defesa. O homem não pode nem fazer nem reter um instante de tempo; todo o tempo
é um puro presente; pelo mesmo motivo poderia considerar o sol e a lua como
equipamento dele. Em teoria, também está comprometido totalmente a serviço do
Inimigo; e se o Inimigo lhe aparecesse em forma corpórea e lhe exigisse esse
serviço total, inclusive por um só dia, não se negaria. Se sentiria muito
aliviado se esse único dia não fosse mais difícil do que escutar a conversação
de uma mulher tola; e se sentiria aliviado até quase sentir-se decepcionado se
durante meia hora desse dia o Inimigo lhe dissesse:
"Agora pode ir se
divertir". Bem, se meditar sobre sua suposição durante um momento, tem que
notar que, de fato, está nessa situação todos os dias. Quando falo de conservar
em sua cabeça esta suposição, portanto, a última coisa que quero que faça é lhe
dar argumentos em sua defesa. Não há nenhum. Seu trabalho é puramente negativo.
Não deixe que seus pensamentos se aproximem minimamente dela. Envolva-a em
penumbra, e no centro dessa escuridão deixe que seu sentimento de propriedade
do tempo permaneça calado, sem inspecionar, e ativo.
O sentimento de propriedade
em geral deve ser estimulado sempre: Os humanos sempre estão reclamando
propriedades que são igualmente ridículas no Céu e no Inferno, e devemos conseguir que o sigam fazendo. Grande parte da
resistência moderna à castidade procede da crença de que os homens são
"proprietários" de seus corpos; esses vastos e perigosos terrenos,
que pulsam com a energia que fez o Universo nos que se encontram sem ter dado seu consentimento e dos que
são expulsos quando Ele quer! É como se fosse uma criança a quem seu pai
colocou, por carinho, como governador titular de uma grande província, sob o
autêntico mando de sábios conselheiros, e chegasse a imaginar que realmente são
suas as cidades, os bosques e os milharais, do mesmo modo que são seus os
tijolos do chão de seu quarto.
Damos lugar a este sentimento de propriedade
não só por meio do orgulho, mas também por meio da confusão. Ensinamos a não
notar os diferentes sentidos do pronome possessivo: as diferenças
minuciosamente graduadas que vão desde "minhas botas", passando por
"meu cão", "meu criado", "minha esposa",
"meu pai", "meu senhor" e "minha pátria", até
"meu Deus".Podemos ensiná-lo a reduzir todos estes sentidos ao de
"minhas botas", o "meu" de propriedade. Inclusive no jardim
de infância, pode ensinar a um menino a referir-se, por "meu
ursinho", não ao velho e
imaginado receptor de afeto, com o que mantém uma relação especial (porque isso
é o que lhes ensinará a querer dizer o Inimigo, se não tomarmos cuidado), senão
ao urso "que posso fazer pedaços
se quiser". E, no outro extremo da escala, ensinamos os homens a dizer
"meu Deus" em um sentido realmente muito diferente do de "minhas
botas", significando "o Deus a quem tenho algo que exigir em troca de
meus distintos serviços e a quem exploro do altar..., o Deus no que me tenho
feito um rincão."
E durante todo este tempo,
divertido-o é que a palavra "meu", em seu sentido plenamente
possessivo, não pode pronunciá-la um ser humano a propósito de nada. Ou Nosso
Pai ou o Inimigo dirão "meu" de tudo o que existe, e em especial de
todos os homens. Já descobrirão ao final, não tema, a quem pertencem realmente
seu tempo, suas almas e seus corpos; certamente, não a eles, aconteça o que
acontecer. Na atualidade, o Inimigo diz "meu" a respeito de tudo, com
a pedante desculpa legalista de que Ele o fez. Nosso Pai espera dizer
"meu" de tudo ao final, com a base mais realista e dinâmica de
havê-lo conquistado.
Seu afetuoso tio,
SCREWTAPE
CARTA Número XXII
Meu caro Wormwood:
Mau! Seu homem se apaixonou,
e da pior maneira possível, e por uma garota que nem sequer figura no relatório
que me enviou! Pode lhe interessar saber que o pequeno mal-entendido com a
Polícia Secreta que tratou de despertar a propósito de certas expressões
incautas em algumas de minhas cartas, foi esclarecido. Se contava com isso para
lhe assegurar meus bons ofícios, descobrirá que está muito equivocado. Pagará
por isso, igualmente que por seus outros equívocos. Enquanto isso, lhe envio um
folheto, recém surgido, sobre o novo Correcional de Tentadores Incompetentes.
Está profusamente ilustrado, e não achará nele nenhuma página aborrecida.
Olhei o relatório dessa
garota e estou apavorado com o que encontrei. Não só uma cristã, mas também que
cristã: uma senhorita vil, escorregadia, boba, recatada, lacônica, aquosa,
insignificante, virginal, prosaica! O animalzinho! Me fez vomitar. Empesteia e
abrasa inclusive através das mesmas páginas do relatório. Enlouquece-me o modo
como piorou o mundo. Deveríamos tê-la destinado à arena do circo, nos velhos
tempos: parece ser o seu tipo. E não é que tampouco ali fosse servir de muito,
não. Uma pequena trapaceira de duas caras (conheço o gênero), que tem o ar de
deprimir-se à vista do sangue, e em seguida morre com um sorriso. Uma
trapaceira em todos os sentidos. Parece uma mosquita morta, e entretanto tem
engenho satírico. O tipo de criatura que me encontraria DIVERTIDO! Asquerosa,
insípida, pacata, e entretanto disposta a cair nos braços deste bobo, como
qualquer outro animal reprodutor. Por que o Inimigo não a fulmina por isso, se
Ele estiver tão louco pela virgindade, em lugar de contemplá-la sorridente?
No fundo, é um hedonista.
Todos esses jejuns, e vigílias, e fogueiras, e cruzes, são tão somente uma
fachada. Ou só como espuma na beira do mar. Em alto mar, em Seu alto mar, há
prazer e mais prazer. Não faz disso nenhum segredo: à Sua direita há
"prazeres eternos". Ai! Não acredito que tenha a mais remota idéia do
elevado e austero mistério ao que descendemos na Visão Miserífica; Ele é
vulgar, Wormwood; Ele tem mentalidade burguesa: encheu Seu mundo de prazeres.
Há coisas que os humanos podem fazer todo o dia, sem que Lhe importe o mínimo:
dormir, lavar-se, comer, beber, fazer o amor, jogar, rezar, trabalhar. Tudo tem
que ser torcido para que tenha alguma utilidade para nós. Lutamos em cruel desvantagem: nada está naturalmente do nosso
lado. (Não é que isso o desculpe. Já acertarei contas contigo. Sempre me odiou
e foi insolente comigo quando se atreveu.)
Em seguida, claro, seu
paciente vai conhecer a família e todo o círculo desta mulher.
Não podia ter percebido de
que a mesma casa em que ela vive é uma casa em que ele nunca devia ter entrado?
Todo o lugar empesta esse mortífero aroma. O mesmo jardineiro, embora só esteja
ali a cinco anos, está começando a pegar o cheiro. Até os hóspedes, depois de
uma visita de um fim de semana, levam consigo um pouco deste aroma. O cão e o
gato também o pegaram. E uma casa cheia do impenetrável mistério. Estamos
certos (é uma questão de princípios elementares) de que cada membro da família
deve estar, de algum jeito, aproveitando-se de outros; mas não conseguimos
averiguar como. Guardam tão ciumentamente como o Inimigo o segredo do que há
detrás desta pretensão de amor desinteressado. Toda a casa e o jardim são uma
vasta indecência. Tem uma repugnante semelhança com a descrição que deu do Céu
um escritor humano: "as regiões onde só há vida e onde, portanto, tudo o
que não é música é silêncio".
Música e silêncio. Como
detesto ambos! Devíamos estar agradecidos de que, desde que Nosso Pai ingressou
no Inferno — embora faça muito mais do que os humanos,
mesmo contando em anos-luz, poderiam medir —, nem um só centímetro quadrado de
espaço infernal e nem um instante de tempo infernal tenham sido entregues a
qualquer dessas duas abomináveis forças, mas sim estiveram completamente
ocupados pelo ruído: o ruído, o grande dinamismo, a expressão audível de tudo o
que é exultante, implacável e viril; o ruído que, sozinho, defende-nos de
dúvidas tolas, de escrúpulos desesperadores e de desejos impossíveis. Faremos
do universo eterno um ruído, no final. Já temos feito grandes progressos neste
sentido no que respeita à Terra. As melodias e os silêncios do Céu serão
sossegados a berros, ao final. Mas reconheço que ainda não somos o bastante
estridentes, nem de longe. Mas estamos investigando. Enquanto isso, você,
asqueroso, pequeno...
(Aqui o manuscrito se
interrompe, e prossegue em seguida com letra diferente.)
No entusiasmo da redação
acabou que, sem me dar conta, permiti-me assumir a forma de um grande miriápodo. Em conseqüência, dito o resto a meu
secretário. Agora que a transformação está completa, noto que é um fenômeno
periódico. Algum rumor a respeito disso chegou até os humanos, e um relato distorcido
figura no poeta Milton, com o ridículo aplique de que tais mudanças de forma
são um "castigo" que nos impõe o Inimigo. Um escritor mais moderno —
alguém chamado algo assim como Pshaw — se precaveu, entretanto, da verdade. A transformação procede de nosso
interior, e é uma gloriosa manifestação dessa Força Vital que Nosso Pai
adoraria, se adorasse algo que não fosse a si mesmo. Em minha forma atual,
sinto-me ainda mais impaciente por lhe ver, para me unir a si em um abraço
indissolúvel.
(Assinado) SAPOTUBO Por
ordem. Sua Abismal Sublimidade Subsecretário. SCREWTAPE, T. E. B. S., etc.
CARTA Número XXIII
Meu caro Wormwood:
Através desta garota e de sua
repugnante família, o paciente está conhecendo agora cada dia a mais cristãos,
e além disso, cristãos muito inteligentes. Durante muito tempo vai ser
impossível extirpar a espiritualidade de sua vida. Muito bem; então, devemos
corrompê-la. Sem dúvida, você tem praticado freqüentemente se transformar em um
anjo da luz, como exercício. Agora é o momento de fazê-lo diante do Inimigo. O
Mundo e a Carne nos falharam; fica um terceiro Poder. E este terceiro tipo de
êxito é o mais glorioso de todos. Um
santo perdido, um fariseu, um inquisidor, ou um bruxo, é considerado no Inferno
como uma melhor peça cobrada do que um tirano ou um dissoluto.
Passando revista aos novos
amigos de seu paciente, acredito que o melhor ponto de ataque seria a linha
fronteiriça entre a teologia e a política. Vários de seus novos amigos são
muito conscientes das implicações sociais de sua religião. Isso, em si mesmo, é
mau; mas pode ser aproveitado a nosso favor.
Descobrirá que muitos
escritores políticos cristãos pensam que o cristianismo começou a
deteriorar-se, e a apartar-se da doutrina de seu Fundador, muito cedo. Devemos
usar esta idéia para estimular uma vez mais a idéia de um "Jesus
histórico", que pode encontrar-se apartando posteriores
"acrescentados e perversões", e que deve em seguida comparar-se com
toda a tradição cristã. Na última geração, promovemos a construção de um destes
"Jesuses históricos" segundo pautas liberais e humanitárias; agora
estamos oferecendo um "Jesus histórico" segundo pautas marxistas,
catastrofistas e revolucionárias. As vantagens destas construções, que nos
propomos trocar a cada trinta anos ou coisa assim, são múltiplos. Em primeiro
lugar, todas elas tendem a orientar a devoção dos homens para algo que não existe, porque todos estes "Jesuses
históricos" são ahistóricos. Os documentos dizem o que dizem, e não se
pode acrescentar-lhes nada; cada novo "Jesus histórico", portanto, tem que ser extraído deles,
suprimindo umas coisas e exagerando outras, e por esse tipo de deduções
(brilhantes é o adjetivo que ensinamos aos humanos a lhes aplicar) pelas quais
ninguém arriscaria cinco moedas na vida normal, mas que bastam para produzir
uma colheita de novos Napoleões, novos Shakespeares e novos Swifts na lista de
outono de cada editorial. Em segundo lugar, todas estas construções depositam a
importância de seu "Jesus histórico" em alguma peculiar teoria que se
supõe que Ele promulgou. Tem que ser um "grande homem" no sentido
moderno da palavra, quer dizer, situado no extremo de alguma linha de
pensamento centrífuga e desequilibrada: um louco que vende uma panacéia. Assim
distraímos a mente dos homens de quem Ele é e do que Ele fez. Primeiro fazemos dEle
tão somente um mestre, e em seguida ocultamos a fundamental concordância
existente entre Seus ensinos e as de todos outros grandes mestres morais.
Porque aos humanos não se deve permitir notar que todos os grandes moralistas
são enviados pelo Inimigo, não para informar aos homens, mas sim para lhes
recordar, para reafirmar contra nossa contínua ocultação as originárias
vulgaridades morais. Nós criamos os sofistas; Ele criou um Sócrates para lhes
responder. Nosso terceiro objetivo é, por meio destas construções, destruir a
vida devocional. Nós substituímos a presença real do Inimigo, que de outro modo
os homens experimentam na oração e nos sacramentos, por uma figura meramente
provável, remota, sombria e grosseira, que falava uma estranha linguagem e que
morreu faz muito tempo. Um objeto assim não pode, de fato, ser adorado. Em
lugar do Criador adorado por sua criatura, logo tem meramente um líder aclamado
por um partidário, e finalmente um personagem destacado, aprovado por um
sensato historiador.
E em quarto lugar, além de
ser ahistórica no Jesus que descreve, esta classe de religião é contrária à história em outro sentido. Nenhuma noção
e poucos indivíduos, vêem-se arrastados realmente ao campo do Inimigo pelo
estudo histórico da biografia de Jesus, como mera
biografia. De fato, privamos os homens do material necessário para uma
biografia completa. Os primeiros conversos foram convertidos por um só feito
histórico (a Ressurreição) e uma só doutrina teológica (a Redenção), atuando
sobre um sentimento do pecado que já tinham; e um pecado não contra uma lei
inventada como uma novidade por um "grande homem", mas sim contra a
velha e tópica lei moral universal que lhes tinha sido ensinada por suas babás
e mães. Os "Evangelhos" vêm depois, e foram escritos, não para fazer
cristãos, mas sim para edificar aos já cristãos.
O "Jesus
histórico", pois, por perigoso que possa parecer para nós em alguma
ocasião particular, deve ser sempre estimulado. Com respeito à conexão geral
entre o cristianismo e a política, nossa posição é mais delicada. É obvio, não
queremos que os homens deixem que seu cristianismo influa em sua vida política,
porque o estabelecimento de algo parecido
com uma sociedade verdadeiramente justa seria uma catástrofe de primeira
magnitude. Por outro lado, queremos, e muito, fazer que os homens considerem o
cristianismo como um meio; preferentemente, claro, como um meio para sua
própria promoção; mas, na falta disso, como um meio para algo, inclusive a
justiça social. O que terá que fazer é conseguir que um homem valorize, a
princípio, a justiça social como algo que o Inimigo exige, e em seguida
conduzi-lo a uma etapa em que valorize o cristianismo porque pode dar lugar à
justiça social. Porque o Inimigo não se deixa usar como um instrumento. Os
homens ou as nações que acreditam que podem reavivar a fé com o fim de fazer uma boa sociedade poderiam, para isso,
pensar que podem usar as escadas do Céu como um atalho à farmácia mais próxima.
Afortunadamente, é bastante fácil convencer os humanos para que façam isso.
Hoje mesmo descobri em um escritor cristão uma passagem no que recomenda sua
própria versão de cristianismo com a desculpa de que "só uma fé assim pode
sobreviver à morte de velhas culturas e ao nascimento de novas
civilizações". Vê a pequena discrepância? "Acreditem nisto, não
porque seja certo, mas sim por alguma; outra razão." Esse é o jogo.
Seu afetuoso tio,
SCREWTAPE
CARTA Número XXIV
Meu caro Wormwood:
Estive me correspondendo com
Suburbiano, que tem a seu cargo a jovem de seu paciente; e começo a ver seu
ponto frágil. É um pequeno vício que não chama a atenção e que compartilha com
quase todas as mulheres que se criaram em um círculo inteligente e unido por
uma crença claramente definida; consiste
na suposição, completamente inconsciente, de que os estranhos que não
compartilham esta crença são realmente muito estúpidos e ridículos. Os homens,
que revistam tratar a estes estranhos, não têm este sentimento; sua confiança,
se são confiantes, é de outro tipo. A dela, que ela crê ser devida à fé, na realidade se deve em grande parte à mera
contaminação do que está à sua volta. Não é, de fato, muito diferente da
convicção que teria, aos dez anos de idade, de que o tipo de facas para peixe
que se usavam na casa de seu pai eram do tipo adequado, ou normal, ou
"autêntico", enquanto que os das famílias vizinhas não eram
absolutamente "autênticas
facas para peixe". Agora, o elemento de ignorância e ingenuidade que há nesta convicção é tão grande, e tão pequeno o elemento
de orgulho espiritual, que nos dá poucas
esperanças em relação à garota. Mas, pense como pode usar isso para influenciar
seu paciente?
É sempre o novato o que
exagera. O homem que subiu na escala social é muito refinado; o jovem estudioso
é pedante. Seu paciente é um noviço neste novo círculo. Está ali diariamente,
encontrando uma qualidade de vida cristã que nunca antes imaginou, e vendo tudo
através de um cristal encantado, porque está apaixonado. Está impaciente (de
fato, o Inimigo o ordena) por imitar esta qualidade. Você pode conseguir que
imite este defeito de sua amada, e que o exagere até que o que era venial nela
resulte, nele, o mais poderoso e o mais belo dos vícios: o Orgulho Espiritual?
As condições parecem
idealmente favoráveis. O novo círculo em que se encontra é um círculo que tem a tentação de sentir-se orgulhoso
por muitos outros motivos, além de seu cristianismo. É um grupo melhor educado,
mais inteligente e mais agradável que nenhum dos que conheceu até agora. Também
está um tanto iludido quanto ao lugar que ocupa nele. Sob a influência do
"amor", pode considerar-se ainda indigno dela, mas está rapidamente
deixando de sentir-se indigno de outros. Não tem nem idéia de quantas coisas
lhe perdoam porque são caridosos, nem de quantas lhe agüentam porque agora, é parte da família. Não imagina quanto de sua
conversa, quantas de suas opiniões, eles reconhecem como ecos das suas.
Suspeita menos ainda de quanto da alegria que sente com essas pessoas se deve
ao encanto erótico que a garota espalha ao seu redor. Acredita que gosta de sua
conversa e seu modo de vida por causa de alguma concordância entre seu estado espiritual e o dela, quando, de fato, eles
estão tão muito mais à frente que ele que, se não estivesse apaixonado, se sentiria meramente assombrado e repelido
por muito do que agora aceita. É como um cão que acreditasse entender de armas
de fogo porque seu instinto de caçador e seu carinho a seu amo lhe permitem
desfrutar de um dia de caça!
Esta é ocasião que você
precisava. Enquanto que o Inimigo, por meio do amor sexual e de umas pessoas
muito simpáticas e muito adiantadas a seu serviço, está levando o jovem até
níveis que de outro modo nunca poderia ter alcançado. Você deve fazê-lo
acreditar que está encontrando o nível que correto: que esse é o seu
"tipo" de gente e que, ao chegar a eles, chegou a seu lar. Quando voltar à companhia de outras pessoas, as
achará aborrecidas; em parte porque quase qualquer companhia a seu alcance é,
de fato, muito menos amena, mas mais ainda porque sentirá falta do encanto da
jovem. Ensine-o a confundir esse contraste entre o círculo que adora e o
círculo que o aborrece com o contraste entre cristãos e não crentes. Faça-o
sentir (mais vale que não o formule com palavras) "que especiais somos
nós, os cristãos!"; e por "nós os cristãos"
deve se referir, na verdade, a "meu grupo"; e por "meu
grupo" deve entender não "as pessoas que, por sua caridade e
humildade, aceitaram-me", mas sim ."as pessoas com que me associo por
direito".
Nosso êxito nisto se apóia em
confundi-lo. Se tentar fazê-lo se sentir explícita e reconhecidamente orgulhoso
de ser cristão, provavelmente fracassará; as advertências do Inimigo são muito
conhecidas. Se, por outro lado, deixar que a idéia de "nós os
cristãos" desapareça por completo e meramente o fizer autosatisfeito de
"seu grupo", produzirá não orgulho espiritual, mas sim mera vaidade
social, que é, em comparação, um inútil e insignificante pecadinho. O que
precisa é manter uma furtiva autofelicitação interferindo em todos seus
pensamentos, e não lhe deixar nunca se fazer a pergunta: "Do que,
precisamente, estou-me felicitando?" A idéia de pertencer a um círculo
interior, de estar em um segredo, lhe é
muito grata. Jogue com isso: ensine-o, usando a influência desta garota em seus
momentos mais tolos, a adotar um ar de diversão diante das coisas que dizem os
não crentes.
Algumas teorias que pode
ouvir nos modernos círculos cristãos podem resultar úteis; me refiro a teorias
que apóiam a esperança da sociedade em algum círculo interior de "funcionários", em alguma minoria adestrada
de teocratas. Não é teu problema seu se essas teorias forem verdadeiras ou
falsas; o que importa é fazer do cristianismo uma religião misteriosa, em a que ele se sinta um dos iniciados. Lhe rogo que não
encha suas cartas de lixo sobre essa guerra européia. Seu resultado final é,
sem dúvida, importante; mas isso é assunto do Alto Comando. Não me interessa
nem um pouco saber quantas pessoas foram mortas pelas bombas na Inglaterra.
Posso me informar do estado de ânimo com que morreram pelo escritório destinado
a esse fim. Que iriam morrer em algum momento, já sabia. Por favor, mantenha
sua mente em seu trabalho.
Seu afetuoso tio,
SCREWTAPE
CARTA Número XXV
Meu caro Wormwood:
O verdadeiro inconveniente do
grupo em que vive seu paciente é que é meramente cristão. Todos têm interesses
individuais, claro, mas seu laço de união segue sendo o mero cristianismo. O
que nos convém, quando os homens se fazem cristãos, é mantê-los no estado de
ânimo que eu chamo "o cristianismo e...". Já sabe: o cristianismo e a
Crise, o cristianismo e a Nova Psicologia, o cristianismo e a Nova Ordem, o
cristianismo e a Fé Curadora, o cristianismo e a Investigação Psíquica, o
cristianismo e o Vegetarianismo, o cristianismo e a Reforma Ortográfica. Se
tiverem que ser cristãos, que ao menos sejam cristãos com uma diferença.
Substituir a fé verdadeira por alguma moda de aparência cristã. Trabalhar em
cima de sua aversão ao Mesmo de Sempre.
A aversão ao Mesmo de Sempre
é uma das paixões mais valiosas que produzimos no coração humano: uma fonte sem
fim de heresias no religioso, de loucuras nos conselhos, de infidelidade no
matrimônio, de inconstância na amizade. Os humanos vivem no tempo e
experimentam a realidade sucessivamente. Para experimentar grande parte da realidade, conseqüentemente, querem experimentar
muitas coisas diferentes; em outras palavras, querem experimentar mudanças. E
já que necessitam de mudança, o Inimigo (posto que, no fundo, é um hedonista)
fez que a mudança lhes seja agradável, assim como tem feito com que comer seja
agradável. Mas como Ele não deseja que façam da mudança, nem de comer, um fim em si mesmo, contrabalançou seu amor
à mudança com seu amor ao permanente. As arrumou para gratificar ambos os
gostos ao mesmo tempo no mundo que Ele criou, mediante essa fusão da mudança e
a permanência que chamamos ritmo. Lhes dá as estações, cada uma diferente mas a
cada ano as mesmas, de tal forma que cada primavera seja sempre uma novidade e
ao mesmo tempo a repetição de um tema imemorial. Lhes dá, em sua Igreja, um ano
litúrgico; trocam de um jejum a uma festa, mas é a mesma festa que antes.
Então, igualmente a isolamos
e exageramos o prazer de comer para produzir a gulodice, isolamos e exageramos
o natural prazer da mudança e o distorcemos até uma exigência de absoluta
novidade. Esta exigência é inteiramente produto de nossa eficiência. Se
descuidarmos de nossa tarefa, os homens não só se sentirão satisfeitos, mas
também transportados pela novidade e familiaridade combinadas dos flocos de neve
deste janeiro, do amanhecer desta manhã, do pudim destes Natais. As crianças,
até que lhes tenhamos ensinado outra coisa, sentir-se-ão perfeitamente felizes
com uma ciranda de jogos segundo as estações, em que saltar amarelinha, brincar
de esconde-esconte, e depois com bolinha de gude tão regularmente como o outono
segue ao verão. Só graças a nossos incessantes esforços se mantém a exigência
de mudanças infinitas, ou arrítmicas.
Esta exigência é valiosa em
vários sentidos. Em primeiro lugar, reduz o prazer, enquanto aumenta o desejo.
O prazer da novidade, por sua mesma natureza, está mais sujeito que qualquer
outro à lei do rendimento decrescente. Uma novidade contínua custa dinheiro, de
forma que seu desejo implica avareza ou infelicidade, ou ambas as coisas. E
além disso, quanto mais ansioso seja este desejo, antes deve engolir todas as
fontes inocentes de prazer e passar àquelas que o Inimigo proíbe. Assim,
exacerbando a aversão ao Mesmo de Sempre, fizemos recentemente as Artes, por
exemplo, menos perigosas para nós como jamais o foram, pois agora tanto os
artistas "intelectuais" como os "populares" se vêem
empurrados por igual a cometer novos e novos excessos de lascívia, injustiça,
crueldade e orgulho. Por último, o afã de novidade é indispensável para
produzir modas ou vogas.
A utilidade das modas no
pensamento é distrair a atenção dos homens de seus autênticos perigos.
Dirigimos o protesto de moda em cada geração contra aqueles vícios que estão em menos perigo de cair, e fixamos
sua aprovação na virtude mais próxima àquele vício que estamos tratando de
fazer endêmico. O jogo consiste em fazê-los correr de um lado ao outro com
extintores de incêndios quando há uma inundação, e todos amontoando-se no lado
do navio que está já quase com a amurada submersa. Assim, tiramos de moda
denunciar os perigos do entusiasmo no momento preciso em que todos se estão
fazendo mundanos e indiferentes; um século depois, quando estamos realmente
fazendo a todos byronianos e ébrios de emoção, o protesto em voga será dirigido
contra os perigos do mero "entendimento". As épocas cruéis são postas
em guarda contra o Sentimentalismo, as cabeças-de-vento e ociosas contra a
Respeitabilidade, as libertinas contra o Puritanismo; e sempre que todos os
homens realmente estiverem apressando-se a converter-se em escravos ou tiranos,
faremos do Liberalismo o pesadelo máximo.
Mas o maior trunfo de todos é
elevar esta aversão ao Mesmo de Sempre a uma filosofia, de forma que o sem
sentido no intelecto possa reforçar a corrupção da vontade. É neste aspecto no
que o caráter Evolucionista ou Histórico do moderno pensamento europeu (em
parte nossa obra) resulta tão útil. O Inimigo adora os tópicos. A respeito de
um plano de ação proposto Ele quer que os homens, até onde alcanço ver,
façam-se perguntas muito simples: É justo? É prudente? É possível? Agora, se
pudermos manter os homens perguntando-se: "Está de acordo com a tendência
geral de nossa época? É progressista ou reacionário? É este o curso de a História?", esquecerão as perguntas relevantes.
E as perguntas que se fazem são, naturalmente, incontestáveis; porque não
conhecem o futuro, e o que será o futuro depende em grande parte precisamente daquelas eleições em que eles invocam o
futuro para que os ajude a fazer. Em conseqüência, enquanto suas mentes estão
zumbindo neste vazio, temos a melhor ocasião para penetrar, e incliná-los à
ação que nós decidimos. E já temos feito muito bom trabalho. Em um tempo,
sabiam que algumas mudanças era o melhor, em outros o pior, e ainda outros
indiferentes. Lhes tiramos em grande parte este conhecimento. Substituímos o
adjetivo descritivo "inalterado" pelo adjetivo emocional "estagnado". Lhes ensinamos a pensar no
futuro como uma terra prometida que alcançam os heróis privilegiados, não como
algo que alcança todo mundo ao ritmo de sessenta minutos por hora, faça o que
faça, seja quem é.
Seu afetuoso tio,
SCREWTAPE
CARTA Número XXVI
Meu caro Wormwood:
Sim; o noivado é o momento de
semear essas sementes que engendrarão, dez anos depois, o ódio doméstico. O encantamento
do desejo insaciado produz resultados que podem fazer que os humanos confundam com os resultados da caridade.
Aproveite-se da ambigüidade da
palavra. "Amor": deixe-os pensar que resolveram mediante o amor
problemas que de fato só apartaram ou deixaram sob a influência deste
encantamento. Enquanto durar, tem a oportunidade de fomentar em segredo os
problemas e fazê-los crônicos.
O grande problema é o do
"desinteresse". Observe, uma vez mais, o admirável trabalho do Ramo
Filológico ao substituir pelo negativo desinteresse, a positiva caridade do
Inimigo. Graças a isso, pode-se desde o começo ensinar um homem a renunciar a
benefícios, não para que outros possam gozar de os ter, mas sim para poder ser
"desinteressado" renunciando a eles. Este é um grande ponto ganho.
Outra grande ajuda, quando as partes implicadas são homem e mulher, é a
diferença de opinião que estabelecemos entre os sexos sobre o desinteresse. Uma
mulher entende por desinteresse, principalmente, ser incomodada pelos outros;
para um homem significa não incomodar aos outros. Em conseqüência, uma mulher
muito dedicada ao serviço do Inimigo se converterá em um incomodo muito maior
que qualquer homem, exceto aqueles aos que Nosso Pai dominou por completo; e,
inversamente, um homem viverá durante muito tempo no campo do Inimigo antes de
que empreenda tanto trabalho espontâneo para agradar aos outros como o que uma
mulher completamente corrente pode fazer todos os dias. Assim, enquanto que a
mulher pensa em fazer boas obras e o homem em respeitar os direitos de outros,
cada sexo, sem nenhuma falta de razão evidente, pode considerar e considera ao
outro radicalmente egoísta.
Além de todas estas
confusões, você pode acrescentar algumas mais. O encantamento erótico produz
uma mútua complacência em que a cada um agrada realmente ceder aos desejos do
outro. Também sabem que o Inimigo lhes exige um grau de caridade que, ao ser
alcançado, daria lugar a atos similares. Deve fazer que estabeleçam como uma
lei para toda sua vida de casados esse grau de mútuo sacrifício de si mesmos,
que atualmente flui espontâneo do encantamento mas que, quando o encantamento
se desvaneça, não terão caridade suficiente para lhes permitir realizá-los. Não
verão a armadilha, já que estão baixo da dupla cegueira de confundir a excitação sexual com a caridade e de
pensar que a excitação durará.
Uma vez estabelecida como
norma uma espécie de desinteresse oficial, legal ou nominal — uma regra para
cujo cumprimento seus recursos emocionais se desvaneceram e seus recursos
espirituais ainda não maturaram —, produzem-se os mais deliciosos resultados.
Ao considerar qualquer ação conjunta, torna-se obrigatório que A argumente a
favor dos supostos desejos de B e contra os próprios, enquanto B faz o
contrário. Com freqüência, é impossível averiguar quais são os autênticos
desejos de qualquer das partes; com sorte, acabam fazendo algo que nenhum quer
enquanto que cada um sente uma agradável sensação de virtuosidade e abriga uma
secreta exigência de tratamento preferência! pelo desinteresse de que deu prova
e um secreto motivo de rancor para o outro pela facilidade com que aceitou seu
sacrifício. Mais tarde, pode entrar no que podemos denominar a Ilusão do
Conflito Generoso. Este jogo se joga melhor com mais de dois jogadores, por
exemplo em uma família com meninos maiores. Propõe-se algo completamente
trivial, como tomar o chá no jardim. Um membro da família cuida de deixar bem
claro (embora não com palavras) que
preferiria não fazê-lo, mas que, é obvio, está disposto a fazê-lo, por "desinteresse". Outros
retiram imediatamente sua proposta, ostensivamente por causa de seu próprio
"desinteresse", mas em realidade porque não querem ser utilizados
como uma espécie de manequim sobre o qual o
primeiro interlocutor deixe cair altruísmos baratos. Mas este não vai se deixar
privar de sua orgia de desinteresse. Insiste em fazer "o que os outros
querem". Eles insistem em fazer o que ele quer. Os ânimos se esquentam.
Logo alguém está dizendo: "Muito bem, pois então não tomaremos chá em lugar
nenhum!", ao que segue uma verdadeira discussão, com amargo ressentimento
de ambos os lados. Vê como se consegue? Se cada um tivesse estado defendendo
francamente seu verdadeiro desejo, todos teriam se mantido dentro dos limites da razão e da cortesia; mas,
precisamente porque a discussão está invertida e cada lado está disputando a
batalha com o outro lado, toda a amargura que realmente flui da virtuosidade e
a obstinação frustradas e dos motivos de rancor acumulados nos últimos dez
anos, fica oculta pelo "desinteresse" oficial ou nominal do que estão
fazendo, ou, pelo menos, serve-lhes como motivo para que lhes desculpe. Cada lado é, de fato, plenamente
consciente de quão barato é o desinteresse do adversário e da falsa posição que
está tratando de lhes empurrar; mas cada um as acerta, para sentir-se
irreprochável e abusado, sem mais desonestidade da que seria natural em um
homem.
Um humano sensato disse:
"Se a gente soubesse quantos maus sentimentos ocasionam o desinteresse,
não se recomendaria tão freqüentemente do púlpito; e além disso: "É o tipo
de mulher que vive para outros: sempre pode distinguir os outros por sua
expressão de acossados". Tudo isto pode iniciar-se inclusive no período de
noivado. um pouco de autêntico egoísmo por parte de seu paciente é com freqüência
de menor valor, para fazer-se com sua alma, que os primeiros começos desse
elaborado e consciente desinteresse que pode um dia florescer em algo como o
que lhe descrevi Certo grau de falsidade mútua, certa surpresa de que a garota
não sempre note quão desinteressado está sendo, podem ser colocar de
contrabando já. Cuida muito destas coisas e, sobretudo, não deixe que os tolos
jovens se apercebam delas. Se as notarem, estarão a caminho de descobrir que o "amor" não é o bastante, que se necessita
caridade e ainda não a alcançaram, e que nenhuma lei externa pode suprir sua
função. Eu gostaria que Suburbiano pudesse fazer algo para minar o sentido do
ridículo dessa jovem.
Seu afetuoso tio,
SCREWTAPE
CARTA Número XXVII
Meu caro Wormwood:
Parece estar conseguindo
muito pouco agora. A utilidade de seu "amor" para distrair o pensamento dele do Inimigo é, por certo, óbvia, mas
revela o pobre uso que você está fazendo dele quando diz que a questão da
distração e do pensamento errante se converteram agora em um dos temas
principais das orações dele. Isso significa que você fracassou grandemente.
Quando esta ou qualquer outra distração cruze sua mente, deveria se animar a
afastá-la por pura força de vontade e a tratar de prosseguir sua oração normal
como se não tivesse acontecido nada; uma vez que aceita a distração como seu
problema atual e expõe isso diante do Inimigo e o faz o tema principal de suas
orações e de seus esforços, então,
longe de fazer bem, fez dano. Algo, inclusive um pecado, que tenha o efeito
final de lhe aproximar do Inimigo, prejudica-nos muito.
Um curso de ação que promete
é o seguinte; agora que está apaixonado, uma nova idéia da felicidade terrena
nasceu em sua mente; e daí uma nova urgência em suas orações, de petição: sobre
esta guerra e outros assuntos semelhantes. Agora é o momento de despertar dificuldades intelectuais a respeito
deste tipo de orações. A falsa espiritualidade deve estimular-se sempre. Com o
motivo aparentemente piedoso de que "o louvor e a comunhão com Deus são a
verdadeira oração", com freqüência se pode atrair aos humanos à desobediência direta ao Inimigo. Quem
(em seu habitual estilo comum, vulgar, sem interesse) lhes terá dito claramente
que rezem pelo pão de cada dia e pela cura de seus doentes. Lhes ocultará,
naturalmente, o fato de que a oração pelo pão de cada dia, interpretada em um
"sentido espiritual", é no fundo tão vulgarmente de petição como em
qualquer outro sentido.
Já que seu paciente contraiu
o terrível hábito da obediência, provavelmente seguirá rezando orações tão
"vulgares" faça o que faça. Mas pode lhe preocupar com suspeitas obcecadas de que tal prática é absurda e não
pode ter resultados objetivos. Não esqueça de usar o raciocínio: "Cara, eu
ganho; coroa, você perde". Se não ocorrer o que ele pede, então isso é uma
prova mais de que as orações de petição não servem; se ocorrer, será capaz,
naturalmente, de ver algumas das causas físicas que conduziram a isso, e
"portanto, teriam ocorrido de qualquer modo", e assim uma petição
concedida resultará tão boa prova como uma recusada, de que as orações são
ineficientes.
Você, sendo um espírito,
achará difícil de entender como se engana deste modo. Mas deve recordar que ele
toma o tempo por uma realidade definitiva. Supõe que o Inimigo, como ele, vê
algumas coisas como presentes, recorda outras como passadas, e prevê outras
como futuras; ou, inclusive, se acreditar que o Inimigo não vê as coisas desse
modo, entretanto, no fundo de seu coração, considerará isso como uma
particularidade do modo de percepção do Inimigo; não crerá realmente (embora
diga que sim) que as coisas são tal como as vê o Inimigo. Se tratasse de lhe
explicar que as orações dos homens de hoje são uma das incontáveis coordenadas
com que o Inimigo harmoniza o tempo que fará amanhã, lhe responderia que então
o Inimigo sempre soube que os homens iriam rezar essas orações e, portanto, não
rezaram livremente mas sim estavam predestinados a fazê-lo. E acrescentaria
ainda, que o tempo que fará um dia dado pode traçar-se através de suas causas
até a criação originária da matéria, de forma que tudo, tanto do lado humano
como do material, está "dado desde o começo". O que deveria dizer é,
é obvio, evidente para nós: que o problema de adaptar o tempo particular às
orações particulares é meramente a aparição, em dois pontos de sua forma de
percepção temporária, do problema total de adaptar o universo espiritual
inteiro ao universo corporal inteiro; que a criação em sua totalidade atua em
todos os pontos do espaço e do tempo, ou melhor, que sua espécie de consciência
os obriga a enfrentar-se com o ato criador Completo
e coerente como uma série de acontecimentos sucessivos. Por que esse ato
criador deixa lugar ao livre arbítrio é o problema dos problemas, o segredo
oculto atrás das tolices do Inimigo sobre o "Amor". Como o faz não
supõe problema algum, porque o Inimigo não prevê os humanos fazendo suas livres
contribuições no futuro, mas sim os vê fazendo-o em seu Agora ilimitado. E,
evidentemente, contemplar um homem fazendo algo não é obrigá-lo a fazê-lo.
Pode-se replicar que alguns
escritores humanos intrometidos, notavelmente Boecio, divulgaram este segredo.
Mas no clima intelectual que ao fim conseguimos despertar por toda a Europa
ocidental, não deve preocupar-se por isso. Só os eruditos lêem livros antigos, e
nos ocupamos já dos eruditos para que sejam, de todos os homens, os que têm
menos probabilidades de adquirir sabedoria lendo-os. Conseguimos isto lhes
inculcando o Ponto de vista Histórico. O Ponto de vista Histórico significa, em
poucas palavras, que quando a um erudito lhe apresenta uma afirmação de um
autor antigo, a única questão que nunca se expõe é se for verdade. Pergunta-se
quem influiu no antigo escritor, e até que ponto sua afirmação é consistente
com o que disse em outros livros, e que etapa da evolução do escritor, ou da
história geral do pensamento, ilustra, e como afetou a escritores posteriores,
e com que freqüência foi mal interpretado (em especial pelos próprios colegas
do erudito) e qual foi a marcha geral de sua crítica durante os últimos dez
anos, e qual é o "estado atual da questão". Considerar o escritor
antigo como uma possível fonte de conhecimento — supor que o que disse poderia
talvez modificar os pensamentos ou o comportamento de alguém —, seria rechaçado
como algo indizivelmente ingênuo. E posto que não podemos enganar continuamente
a toda a raça humana, resulta da máxima
importância isolar assim cada geração das demais; porque quando o conhecimento
circula livremente entre uma época e outra, existe sempre o perigo de que os
enganos característicos de uma possam ser corrigidos pelas verdades
características de outra. Mas, graças a Nosso Pai e ao Ponto de vista
Histórico, os grandes sábios estão agora tão pouco nutridos pelo passado como o
mais ignorante mecânico que mantém que "a história é um absurdo".
Seu afetuoso tio,
SCREWTAPE
CARTA Número XXVIII
Meu caro Wormwood:
Quando lhe disse que não
enchesse suas cartas de lixo a respeito da guerra queria dizer, é obvio, que
não queria ouvir suas rapsódias bem infantis sobre a morte dos homens e a
destruição das cidades. Na medida em que a guerra afete realmente o estado
espiritual do paciente, naturalmente quero relatórios completos. E neste
aspecto parece singularmente obtuso. Assim, me conta com alegria que há motivos
para esperar intensos ataques aéreos sobre a cidade onde vive o paciente. Este
é um exemplo atroz de algo a respeito do que já me lamentei: a facilidade com
que esquece a finalidade principal de seu gozo imediato do sofrimento humano. Não sabe que as bombas matam
homens?
Ou não se dá conta de que a
morte do paciente, neste momento, é precisamente o que queremos evitar? Escapou
dos amigos mundanos com os que tentou atá-lo;
apaixonou-se" por uma
mulher muito cristã e no momento é imune a seus ataques contra sua castidade; e
os diferentes métodos de corromper sua vida espiritual que provamos até agora
não tiveram êxito. Neste momento, quando todo o impacto da guerra se aproxima e
suas esperanças mundanas ocupam um lugar proporcionalmente inferior em sua mente, cheia de seu trabalho de defesa, cheia
da garota, obrigada a ocupar-se de seus vizinhos mais que nunca o tinha feito e
gostando mais do que esperava, "fora de si mesmo", como dizem os
humanos, e aumentando cada dia sua dependência consciente do Inimigo, é quase
seguro que o perderemos se morrer esta noite. Isto é tão evidente que me dá
vergonha escrevê-lo. Pergunto-me às vezes se não manterá os diabos jovens
durante muito tempo seguido em missões de tentação, se não correrem algum
perigo de acabar infectados pelos sentimentos e valores dos humanos entre os
quais trabalham. Eles, é obvio, tendem a considerar a morte como o mal máximo,
e a sobrevivência como o bem supremo. Mas isto é porque os educamos para que
pensassem assim. Não nos deixemos contagiar por nossa própria propaganda. Já
sei que parece estranho que seu objetivo primitivo no momento seja precisamente
aquilo pelo que rezam a noiva e a mãe
do paciente; quer dizer, sua segurança física. Mas assim é: deveria estar
cuidando-o como a menina de seus olhos. Se morrer agora, perde-o. Se sobreviver
à guerra, sempre há esperança. O Inimigo o protegeu de você, durante a primeira
grande onda de tentações. Mas, só se puder mantê-lo vivo, terá o tempo como
aliado seu. Os compridos, aborrecidos e monótonos anos de prosperidade na idade
madura ou de adversidade na mesma idade são um excelente tempo de combate. É
tão difícil para estas criaturas perseverar... A rotina da adversidade, a
gradual decadência dos amores juvenis e das esperanças juvenis, o desespero
mudo (quase não sentido como doloroso) de superar alguma vez as tentações
crônicas com que uma ou outra vez os derrotamos, a tristeza que criamos em suas
vidas, e o ressentimento incoerente com que os ensinamos a reagir a ela, tudo
isto proporciona admiráveis oportunidades para desgastar uma alma por
esgotamento. Se, ao contrário, sua idade madura for próspera, nossa posição é
ainda mais sólida. A prosperidade une um homem ao Mundo. Sente que está
"encontrando seu lugar nele", quando na realidade o mundo está encontrando
seu lugar nele. Seu crescente prestígio,
seu cada vez mais amplo círculo de conhecidos, a crescente pressão de um
trabalho absorvente e agradável, constroem em seu interior uma sensação de
estar realmente à vontade na Terra, que é precisamente o que nos convém. Notará
que os jovens geralmente resistem menos a morrer que os maduros e os velhos.
O certo é que o Inimigo,
depois de haver estranhamente destinado estes meros animais à vida em Seu próprio mundo eterno, protegeu-os
bastante eficazmente do perigo de sentir-se confortáveis em qualquer outro
lugar. Por isso devemos com freqüência desejar uma longa vida a nossos
pacientes; em setenta anos não sobra um dia para a difícil tarefa de
desembaraçar suas almas do Céu e edificar uma firme atadura à Terra. Enquanto são jovens, sempre os encontramos saindo pela tangente.
Inclusive se arrumamos isso para os manter ignorantes da religião explícita, os
imprevisíveis ventos da fantasia, a música e a
poesia — o mero rosto de uma moça, o canto de um pássaro, ou a visão de um horizonte — sempre estão mandando pelos ares
toda nossa estrutura. Não se dedicarão firmemente ao progresso mundano, nem às
relações prudentes, nem à política de segurança acima de tudo. Seu apetite do
Céu é tão contumaz que nosso melhor método, nesta etapa, para os amarrar à
Terra é fazê-los acreditar que a Terra pode ser convertida no Céu em alguma
data futura pela política ou a eugenia ou a "ciência" ou a psicologia
ou algo. O verdadeiro mundanismo é obra do tempo, ajudado, naturalmente, pelo
orgulho, porque lhes ensinamos a descrever a morte que avança, arrastando-se
como Bom Sentido ou Maturidade ou Experiência. A experiência, no peculiar
sentido que lhes ensinamos, é, por certo, uma
palavra de grande utilidade. Um grande filósofo humano quase revelou nosso
segredo quando disse que, no referente à Virtude, "a experiência é a mãe
da ilusão"; mas graças a uma mudança de moda, e obrigado também, é obvio,
ao Ponto de vista Histórico, fizemos virtualmente inofensivo seu livro.
Pode calcular-se quão
inapreciável é o tempo para nós pelo fato de que o Inimigo nos conceda tão
pouco. A maior parte da raça humana morre na infância; dos superviventes,
muitos morrem na juventude. É claro que para Ele o nascimento humano é
importante sobretudo como forma de fazer possível a morte humana, e a morte só
como passagem a esse outro tipo de vida. Nos permite trabalhar unicamente sobre
uma seleta minoria da raça, porque o que os humanos chamam uma "vida
normal" é a exceção. Aparentemente, Ele quer que alguns — mas só muito poucos
— dos animais humanos com que está povoando o Céu tenham tido a experiência de
resistir ao longo de uma vida
terrestre de sessenta ou setenta anos. Bom, essa é nossa oportunidade. Quanto
menor seja, melhor temos que aproveitá-la. Faça o que fizer, mantenha a seu
paciente tão a salvo como lhe for possível.
Seu afetuoso tio,
SCREWTAPE
CARTA Número XXIX
Meu caro Wormwood:
Agora que é certo que os
humanos alemães vão bombardear a cidade de seu paciente e que suas obrigações
serão mantê-lo no lugar de máximo perigo, devemos pensar nossa política. Temos
que tomar por objetivo a covardia ou o valor, com o orgulho conseguinte... ou o
ódio aos alemães?
Bom, temo que é inútil tratar
de o fazer valente. Nosso Departamento de Investigação não descobriu ainda
(embora o êxito seja esperado a cada momento) como produzir nenhuma virtude.
Esta é uma grave desvantagem. Para ser enorme e efetivamente mau, um homem
necessita alguma virtude. O que teria sido Átila sem seu valor, ou Shylock sem
abnegação no que se refere à carne? Mas como não podemos ministrar essas
qualidades nós mesmos, só podemos utilizá-las quando as ministra o Inimigo; e
isto significa deixar a Ele uma espécie de ligação naqueles homens que, de
outro modo, fizemos mais totalmente nossos. Um acerto muito insatisfatório, mas
confio em que algum dia conseguiremos melhorá-lo.
O ódio podemos conseguir. A
tensão dos nervos humanos no meio do ruído, do perigo e da fadiga os faz
propensos a qualquer emoção violenta, e só é questão de guiar esta
suscetibilidade pelos canais adequados. Se sua consciência resistir, deixe-o
aturdido. Deixe-o dizer que sente ódio não por ele, mas sim em nome das
mulheres e dos meninos, e que a um cristão dizem que perdoe a seus próprios
inimigos, não aos de outras pessoas. Em outras palavras, deixe-o se considerar
bastante identificado com as mulheres e os meninos para sentir ódio em seu
nome, mas não o bastante identificado para considerar os inimigos destes como próprios e, em conseqüência,
como merecedores de seu perdão.
Mas é melhor combinar o ódio
com o medo. De todos os vícios, só a covardia é puramente dolorosa: horrível de
antecipar, horrível de sentir, horrível de recordar; o ódio tem seus prazeres.
Em conseqüência, o ódio é freqüentemente a compensação mediante a qual um homem assustado se ressarce dos sofrimentos do
medo. Quanto mais medo tenha, mais odiará. E o ódio é também um antídoto da
vergonha. portanto, para fazer uma ferida profunda em sua caridade, primeiro
deve vencer seu valor.
Agora bem. Este é um assunto
difícil. Fizemos com que os homens se orgulhem da maior parte dos vícios, mas
não da covardia. Cada vez que estivemos a ponto de obtê-lo, o Inimigo permite
uma guerra ou um terremoto ou qualquer outra calamidade, e imediatamente o
valor resulta tão obviamente encantador e importante, inclusive aos olhos dos
humanos, que todo nosso trabalho é arruinado, e ainda fica um vício de que
sentem autêntica vergonha. O perigo de inculcar a covardia a nossos pacientes,
portanto, estriba em que provocamos um verdadeiro conhecimento de si mesmos e
verdadeiro autodesprezo, com o arrependimento e a humildade conseguintes. E, de
fato, durante a última guerra, milhares de humanos, ao descobrir sua covardia,
descobriram a moral pela primeira vez. Na paz, podemos fazer que muitos deles ignorem
por completo o bem e o mal; em perigo,
a questão os expõe de tal forma que nem sequer nós podemos lhes cegar. Isto
supõe um cruel dilema para nós. Se fomentássemos a justiça e a caridade entre os homens, faríamos o jogo do
Inimigo; mas se os conduzimos ao comportamento oposto, isto produz antes ou
depois (porque Ele permite que o produza) uma guerra ou uma revolução, e a
iniludível alternativa entre a covardia e o valor acordado a milhares de homens da letargia moral.
Esta é, de fato, provavelmente, uma das razões
do Inimigo para criar um mundo perigoso, um mundo no qual as questões morais se
expõem a fundo. Ele vê tão bem como você que o valor não é simplesmente uma das
virtudes, mas sim a forma de todas as virtudes em seu ponto de vista, o que significa
no ponto de máxima realidade. Uma castidade ou uma honradez ou uma piedade que
cede diante do perigo será casta ou honrada ou piedosa só com condições.
Pilatos foi piedoso até que resultou ser arriscado.
É possível, portanto, tanto
perder como ganhar fazendo de seu homem um covarde: pode aprender muito sobre
si mesmo! Sempre existe a possibilidade, claro está, não de cloroformizar a
vergonha, mas sim de aguçá-la e provocar o desespero. Isto seria um grande
trunfo. Demonstraria que tinha acreditado no perdão de seus outros pecados pelo
Inimigo, e que o tinha aceito, só porque ele mesmo não sentia completamente sua
pecaminosidade; que com respeito ao único vício cuja completa profundidade de
desonra compreende não pode procurar o Perdão, nem confiar nele. Mas temo que o
deixou avançar muito na escola do Inimigo, e que sabe que o desespero é um
pecado mais grave que qualquer dos que a produzem.
Quanto à técnica real da
tentação à covardia, não é necessário dizer muito. O fundamental é que as
precauções tendem a aumentar o medo. As precauções publicamente impostas a seu
paciente, entretanto, logo se convertem em uma questão rotineira, e esse efeito
desaparece. O que deve fazer é manter dando voltas por sua cabeça (ao lado da
intenção consciente de cumprir com seu dever) a vaga idéia de tudo o que pode
fazer ou não fazer, dentro do marco de seu dever, que parece lhe dar um pouco
mais de segurança. Desvie seu
pensamento da simples regra ("Tenho que permanecer aqui e fazer tal e qual
coisa") a uma série de hipótese imaginárias. ("Se ocorresse A —
embora espere que não — poderia fazer B, e no pior dos casos, poderia fazer
C.") Se reconhecer isso como tais, podemos lhe inculcar superstições. A
questão é fazer que não deixe de ter a sensação de que, além do Inimigo e do
valor que o Inimigo lhe infunde, tem algo mais a que recorrer, de forma que o
que tinha que ser uma entrega total ao dever, seja totalmente minado por
pequenas reservas inconscientes. Fabricando uma série de recursos imaginários
para impedir "o pior", pode provocar, a esse nível de sua vontade do
que não é consciente, a decisão de que não ocorrerá "o pior". Em
seguida, no momento de verdadeiro terror, mete-lhe nos nervos e nos músculos e
pode conseguir que cometa o ato fatal antes
de que saiba o que lhe propõe. Porque, recorda-o, o ato de covardia é o único que importa; a emoção do medo não é, em si, um
pecado, e, embora desfrutemos dela, não nos serve para nada.
Seu afetuoso tio,
SCREWTAPE
CARTA Número XXX
Meu caro Wormwood:
Às vezes me pergunto se você
acredita que foi enviado ao mundo para sua própria diversão. Colijo, não de seu
miseravelmente insuficiente relatório, mas sim do da Polícia Infernal, que o
comportamento do paciente durante o primeiro ataque aéreo foi o pior possível.
Esteve muito assustado e se acredita um grande covarde, e portanto não sente
nenhum orgulho; mas tem feito tudo o que seu dever lhe exigia e talvez um pouco
mais. Frente a este desastre, tudo o que pode mostrar em seu haver é um ataque
de mau humor contra um cachorro que o fez tropeçar, um número algo excessivo de
cigarros fumados, e de ter esquecido uma oração. Do que serve que se lamente
isso de suas dificuldades? Se está atuando de acordo com a idéia de "justiça" do Inimigo e insinuando que
suas possibilidades e suas intenções devessem se ter em conta, então não estou
muito certo de que não lhe esteja fazendo merecedor de uma acusação de heresia. Em qualquer caso, logo
verá que a justiça do Inferno é puramente realista, e que só lhe interessam os
resultados. Nos traga alimento, ou seja você mesmo alimento.
A única passagem construtiva
de sua carta é aquela onde diz que ainda espera bons resultados da fadiga do
paciente. Isso está bastante bem. Mas não lhe cairá nas mãos. A fadiga pode
produzir uma extrema amabilidade, e paz de espírito, e inclusive um pouco
parecido à visão. Se tiver visto com freqüência homens empurrados por ela à
irritação, a malícia e a impaciência, isso é porque esses homens tinham
tentadores eficientes. O paradoxal é que uma fadiga moderada é melhor terreno
para o mau humor do que o esgotamento
absoluto. Isto depende em parte de causas físicas, mas em parte de algo mais.
Não é simplesmente a fadiga como tal que produz a irritação, mas sim as
exigências inesperadas a um homem já cansado. Seja o que for o que esperem, os
homens logo chegam a pensar que têm direito a isso: o sentimento de decepção
pode ser convertido, com muito pouca habilidade de nossa parte, em um
sentimento de ofensa. Os perigos do cansaço humilde e amável começam quando os
homens se renderam ao irremediável, uma vez que perderam a esperança de
descansar e deixaram de pensar até na meia hora seguinte. Para conseguir os
melhores resultados possíveis da fadiga do paciente, portanto, deve alimentá-lo
com falsas esperanças. Lhe coloque na cabeça raciocínios plausíveis para
acreditar que o ataque aéreo não se repetirá. Faça com que se reconforte
pensando quanto desfrutará da cama na próxima noite. Exagere o cansaço,
fazendo-o acreditar que logo terá passado, porque os homens resistem a sentir
que não teriam podido suportar por mais tempo um esforço no momento preciso em
que se está acabando, ou quando acreditam que se está acabando. Nisto, como no
problema da covardia, o que terá que evitar é a entrega absoluta. Diga o que
disser, faça que sua íntima decisão não seja suportar o que lhe couber, mas sim
suportá-lo "por um tempo razoável"; e faça que o tempo razoável seja
mais curto do que seja provável que vá durar a prova. Não faz falta que seja
muito mais curto; nos ataques contra a paciência, a castidade e a fortaleza,
divertido é fazer que o homem se renda justo quando (se o tivesse sabido) o
alívio estava quase à vista.
Não sei se é provável ou não
que se encontre com a garota em situações de apuro. Se a vir, utilize a fundo o
fato de que, até certo ponto, a fadiga faz que as mulheres falem mais e que os
homens falem menos. Daí pode despertar-se muito ressentimento secreto, até
entre apaixonados.
Provavelmente, as cenas que
está presenciando agora não fornecerão material para levar a cabo um ataque
intelectual contra sua fé; seus fracassos precedentes puseram isso fora de seu
poder. Mas há um tipo de ataque às emoções que ainda pode tentar. Consiste em
fazê-lo sentir, quando vir pela primeira vez restos humanos grudados numa parede, que assim é "como é realmente o
mundo", e que toda sua religião foi uma fantasia. Se terá dado conta de
que os temos completamente obnubilados assim que ao significado da palavra "real". Se dizem entre si, a respeito
de alguma grande experiência espiritual: "Tudo o que realmente aconteceu é
que ouviu um pouco de música em um edifício iluminado"; aqui
"real" significa os fatos físicos nus, separados de outros elementos
da experiência que, efetivamente, tiveram. Por outra parte, também dirão:
"Está muito bem falar
desse salto de um trampolim alto, aí sentado em uma poltrona, mas espera estar
lá em cima e verá o que é realmente": aqui "real" se utiliza no
sentido oposto, para referir-se não aos fatos físicos (que já conhecem,
enquanto discutem a questão sentados em poltronas), mas sim ao efeito emocional
que estes fatos têm em uma consciência humana. Quaisquer destas acepções da
palavra poderia ser defendida; mas nossa missão consiste em manter as duas
funcionando ao mesmo tempo, de forma que o valor emocional da palavra "real"
possa colocar-se agora a um lado, agora ao outro, da conta, conforme nos convenha. A regra geral que já estabelecemos
bastante bem entre eles é que em todas as experiências que podem lhes fazer
melhores ou mais felizes só os fatos físicos são "reais", enquanto
que os elementos espirituais são "subjetivos"; em todas as
experiências que podem desanimá-los ou corrompê-los, os elementos espirituais
são a realidade fundamental, e ignorá-los é ser um escapista. Assim, como no
parto, o sangue e a dor são "reais", e a alegria um mero ponto de
vista subjetivo; na morte, o terror e a fealdade revelam o que a morte
"significa realmente". A odiosidade de uma pessoa odiada é
"real": no ódio se vê os homens tal como são, está-se desiludindo;
mas o encanto de uma pessoa amada é meramente uma neblina subjetiva que oculta
um fundo "real" de apetência sexual ou de associação econômica. As
guerras e a pobreza são "realmente" horríveis; a paz e a abundância
são meros feitos físicos, próximo dos quais resulta
que os homens têm certos sentimentos. As criaturas sempre estão acusando-se
mutuamente de querer "comer o bolo e o ter": mas graças a nosso
trabalho estão mais freqüentemente na difícil situação de pagar o bolo e não
come-lo. Seu paciente, adequadamente manipulado, não terá nenhuma dificuldade
em considerar sua emoção diante do espetáculo de umas vísceras humanas como uma
revelação da realidade.
E sua emoção diante da visão
de uns meninos felizes ou de um dia radiante como mero sentimento.
Seu afetuoso tio,
SCREWTAPE
CARTA Número XXXI
Meu caro, meu caríssimo Wormwood, meu bonequinho, meu leitão:
Quão equivocadamente, agora que tudo está perdido,
você vem choramingando me perguntar se aquelas palavras de afeto que eu dirigia
a você não significavam nada desde o começo! Longe disto! Pode ter certeza que
meu amor por você, tanto quanto seu amor por mim se assemelham tanto quanto
duas ervilhas. Eu tenho sempre lhe desejado, como você (mísero tolo) tem me
desejado. A diferença é apenas que eu sou o mais forte. Eu acho que eles me
entregarão você no momento (ou um pedaço de você). Amar você? Claro,
certamente. Como um petisco delicioso igual aos outros que me tem engordado.
Você deixou uma alma escapar por entre seus dedos. O
uivo de fome aguda por tal perda ecoa neste momento em todos os níveis do Reino
da Barulheira até descer ao próprio Trono. Só de pensar, enlouqueço! Como eu
conheço o que aconteceu naquele instante em que eles o arrancaram de você!
Houve subitamente um clarão em seus olhos (não foi assim mesmo?) e ele viu você
pela primeira vez em sua vida, e reconheceu o papel que você tinha desempenhado
nela, e soube também que jamais você teria acesso a ele novamente. Apenas
imagine (e isso seja o princípio de sua agonia) o que ele sentiu naquele exato
momento; como uma casca de ferida que tivesse caído de uma velha chaga,
tal qual ele tivesse emergido de uma pústula, como se ele tivesse se despojado
de uma roupa gosmenta, mal-cheirosa num único movimento. Pelos Infernos, já não
basta a miséria que é vê-los em seus dias mortais tirando suas roupas sujas e
desconfortáveis e imergindo numa banheira de água quente emitindo pequenos
grunhidos de prazer enquanto esticam seus membros cansados? O que dizer então
deste despojamento final, desta purificação plena?
Quanto mais se pensa,
pior fica. Ele entrou tão
facilmente na nova existência, você percebeu? Nada de dúvidas
crescentes, sem condenações médicas, nada de enfermeiras em casa, salas de
cirurgia, ou falsas esperanças de vida; ao invés disso, libertação instantânea.
Em um momento, tudo parecia estar no nosso mundo; o estrondo das bombas, as
casas desmoronando, o cheiro e gosto horríveis dos explosivos em seus lábios e
pulmões, os pés queimando de tanto cansaço, o coração gelado de horror, o
cérebro confuso, as pernas vacilantes; no momento seguinte tudo isto havia
passado, como se tudo fosse apenas um pesadelo, pelo qual ele nunca mais
haveria de passar. Seu derrotado! Seu idiota incompetente! Percebeu quão
naturalmente - como se tivesse nascido para isso - o verme gerado em cima de
uma cama passou para a nova vida? Como todas as dúvidas que ele tivera de
repente estavam claras diante de seus olhos, e se tornavam simplesmente
ridículas? Eu sei o que a criatura disse pra si mesmo! "Sim, Claro. Isso
sempre foi assim mesmo..." Todos os horrores tem seguido o mesmo curso, e
foram piorando, e piorando como uma rolha sob pressão numa garrafa, até que de
repente, a rolha pulou fora. Como um dente infeccionado que doía mais, e mais,
e mais, até que de repente era extraído. O sonho se tornava cada vez mais em
pesadelo, até que finalmente você desperta! Não entendo realmente como os seres
humanos ainda podem duvidar de todas estas coisas...
Assim como ele
viu você, também
viu a Eles. Eu sei bem como foi. Você ficou subitamente cegado e paralisado,
mais ferido por eles do que ele havia sido pela bomba final. Que degradação que
é isto! Que esta coisa de terra e lodo pudesse estar de pé e conversando com
espíritos diante dos quais você, um espírito, só podia tremer de medo. Pode ser
que você ainda tivesse a esperança de que a surpresa e a estranheza pudessem
atrapalhar a alegria dele. Mas isto é outra coisa estranha; os deuses são
estranhos aos olhos mortais, mas mesmo assim, não são tão estranhos. Ele tinha
uma concepção fantasiosa ainda acerca da aparência que eles teriam, e
talvez até tivesse dúvidas sobre sua existência. Mas
quando os viu, ele soube que eles sempre estiveram junto a ele, e reconheceu
cada parte que eles haviam operado em muitas horas de sua vida, quando ele se
imaginava sozinho e desamparado, de forma que agora, ao invés dele se dirigir a
eles com um "Como vão vocês", disse algo como "Então eram vocês
o tempo todo hein!" Tudo que ele fez e disse vinha agora novamente, de
suas memórias. O reconhecimento o fez livre de sua companhia ainda antes que os
membros de seu corpo destruído esfriassem. E somente você ficou de fora.
Mas ele não pôde contemplar apenas os seres celestiais...
ele pôde contemplar a Ele! Este animal, esta coisa nascida sobre uma cama pôde
olhar para Ele! O que para você é um fogo cegante e consumidor é agora luz
fresca para ele, a claridade personificada sob forma de homem. Você gostaria de
interpretar, se pudesse, a prostração do paciente na Presença, a sua
auto-abominação e o conhecimento cabal de todos os seus pecados (Sim,
Wormwood... um conhecimento até mais profundo que o seu) em contrapartida com a
atmosfera mortal que emana do coração do Céu. Mas nada disto faz sentido
conversarmos agora. Se ainda encontrar algum sofrimento pela frente, ele os
aceitará sem reservas ou revoltas. E não os trocaria por nenhum prazer terreno
nunca mais. Todas as delícias dos sentidos, do coração, do intelecto que você
pudesse usar para tentá-lo antes, agora lhe pareceriam como a atração nauseante
que uma prostituta pudesse exercer sobre um homem que estava ouvindo a
batida na porta da mulher que amara a vida inteira e acreditava morta. Ele
transpusera a fronteira do mundo, onde a dor e o prazer tomam valores
transfinitos e onde nossa aritmética falha miseravelmente em tentar
compreender. Mais uma vez, o inexplicável acaba conosco. Da mesma laia
dos tentadores inúteis como você, a maior fonte de falhas continua sendo nosso
Departamento de Inteligência. Se apenas soubéssemos o que Ele está tramando!
Droga! Droga! Saber isto em si mesmo já nos daria tudo que é necessário para
tomarmos o Poder. Algumas vezes, quase caio em desespero. Tudo que me sustenta
é a convicção de que nosso Realismo, nossa rejeição (em face de todas as
tentações) TEM QUE VENCER, no final. Enquanto isso, eu terei você para me
divertir um pouco.
Muito
verdadeiramente,
seu
afetuoso e a cada minuto mais voraz tio
SCREWTAPE
Nenhum comentário:
Postar um comentário